quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Alimentando frustrações e desfazendo esterótipos

esses jogos perigosos não são de guerra
Leonilson, 1990


O Recon é um dos mecanismos de sociabilidade mais importantes da comunidade de homens fetichistas hoje em dia. Junto com o FetLife ele é um dos espaços que tem propiciado conhecer pessoas, trocar experiências, construir redes de parceria e afeto. Contudo, diferente do Fetlife, o Recon tem a vantagem de ser voltada majoritariamente para homens gays cisgêneros – ou seja, pessoas que ao nascer foram identificadas como homens e se reconhecem como tal. Além disso, nos últimos anos a cena do BDSM tem se expandido. Alguns chamam isso de "efeito 50 tons de cinza", e é provável que de fato o seja. Mas o que eu gostaria de falar nesse texto de retorno ao blog é sobre diferentes formas de frustração que esse tipo de interação vem criando - e como, às vezes, elas podem ser produtivas. 

Caso você não saiba, o Recon é um site e aplicativo destinado a promover encontros entre homens gays e fetichistas dentro da cena BDSM. O site foi criado em 1999 e em 2010 passou a ter um versão pro para aplicativos em formato iOS, popularizando-se pouco tempo depois com as versões experimentais para outras interfaces. Hoje ele é a maior e mais conhecida plataforma voltada para a comunidade. Minha primeira conta no Recon foi criada justamente próximo a esse momento de popularização, em 2015 ou 2016. Era uma época de curiosidade pra mim e também de encontro, um momento em que descobri que não estava tão sozinho quando se tratava de ter ideias "pouco ortodoxas" para viver minha própria sexualidade.

Hoje a plataforma tem mais de 200.000 usuários em todo o mundo. Mas, olhando ao redor, não é como se a comunidade fetichista ou, ao menos a cena BDSM estivesse crescendo – ainda que sem dúvida, em certos lugares ela tenha se tornado mais visível e fortalecido. Parte desse crescimento vem do fato de o aplicativo ter entrado no rol de aplicativos de encontro para homens gays. Assim como o Scruffy, o Grindr, Hornet e outros tantos, o Recon agora faz parte de uma dinâmica mais ampla de procura de parceiros e de exploração da sexualidade.

Antes de continuar é preciso refletir sobre duas coisas. Primeiro, cada um desses aplicativos é experimentado de uma maneira específica por cada pessoa. Provavelmente ao ler isso você intuitivamente reconheça que certos tipos de pessoas ou práticas serão mais facilmente encontradas em um aplicativo do que em outro. Se você procura um cara urso, talvez você imagine que seja mais fácil encontrar alguém assim no Scruffy ou no Growlr, por exemplo. No caso do Recon, a especificidade segue sendo a experiência fetichista, ou de modo muito genérico, um tipo de sexo não convencional. Além disso, um outro aspecto importante de se ter em conta é que é sempre positivo que as pessoas estejam abertas e curiosas para viver e experimentar a sexualidade da forma que melhor lhes convier, desde que respeitem os princípios básicos de consentimento e bom senso. O que me chama atenção, todavia, é que o que seja fetiche e o que seja BDSM, ou a tal "pegada forte", não são coisas tão simples de explicar e de entender. O resultado inevitavelmente é que parece que estamos falando sobre a mesma coisa, quando não,  e com isso criamos e alimentamos frustrações baseadas em nossas próprias suposições.

Jogos Perigosos, Leonilson (1990)



Em ocasiões anteriores já escrevi aqui que BDSM e sexo pesado (hardcore) não são sinônimos. Essa confusão se mescla com uma série de outras projeções fantasiosas do que são a cena BDSM e a comunidade fetichista. É provável que ao pensar em um dominador a imagem que vem à mente seja de um homem vestido em couro, por exemplo. E de fato, ainda que leathermen (as pessoas, em geral os homens, que curtem couro) possam ser dominadores, não é como se essa associação fosse absoluta ou óbvia ao longo da história. De igual maneira, cabe pensar onde se enquadram práticas já frequentes no roteiro atual, como o fisting. Fisting é uma prática de submissão? De disciplina? Onde encaixar no nosso acróstico?

Nesses anos de experiência já tive a oportunidade de conhecer pessoas de várias partes do mundo a partir do Recon. E com isso fui acumulando um repertório de experiências e conhecimentos que me ajudaram a me formar como dominador. Essas experiências não foram todas legais. Em 2019 quando estava em Berlin fui vítima de xenofobia quase uma dezena de vezes por vários usuários europeus. Tantas vezes tive conversas frustrantes e desinteressantes que pareciam iguais às de qualquer outra aplicativo, seguindo um roteiro grosseiro e mal educado. Aliás, esse tipo de interação é a que tem se tornando cada vez mais frequente. Subguloso01 diz: E ai afim de meter. Não, não estou. 

Como usuário, tenho vivido e pensado um pouco sobre minhas frustrações. Mais que isso, tenho pensando no que pode acontecer com esse encontro entre diferentes concepções e experiências sobre a sexualidade fora do mundo baunilha. Não é muito difícil, ao navegar pelo aplicativo, que se encontre declarações vagas do tipo "sub com pouquíssimos limites", "curto ser dominado por macho com pegada", ou "aberto a experimentar novos fetiches". Se por um lado isso mostra algo vibrante desse grupo de pessoas em termos de uma curiosidade genuína, por outro pode criar desentendimentos. Não foram poucas às vezes que pessoas com esse tipo de perfil já antecipavam uma lista de coisas que queriam que eu fizesse com elas. Ou ainda, que ao propor alguma atividade ou cena específica, se recusassem por sair fora do seu script. Cabe perguntar então: Não ter  limites é algo positivo ou é só uma delegação da responsabilidade? O que caralhos uma pessoa quer dizer quando pensa em "fetiche"? 

Uma coisa que caracteriza o BDSM e o distingue de outros universos são os protocolos. Hoje em dia talvez seja um pouco fora de moda, e com isso ganhamos muitas coisas interessantes. Mas o fato é que em certos contextos, a gente adora estabelecer formas de relacionamento e tratamento que são bastante particulares, principalmente quando se trata de uma relação entre Dominadores e submissos, ou entre mestres e as pessoas que Lhes prestam reverência. Isso passa pela gramática (essa regra já clássica das iniciais maiúsculas, por exemplo), pelo modo como as conversas são construídas e tudo mais. Evidentemente, seguir esse protocolo é um processo em construção. Dominação e submissão se constroem no convívio, ainda que certa cortesia seja sempre bem vinda.

Se por um lado essas experiências frustrantes criam a impressão de que estamos "perdidos na tradução", elas também mostram um reavivamento das possibilidades de viver a sexualidade (mesmo considerando que estamos falando de uma comunidade de homens gays, muitos deles brancos e com um mínimo de capital social ou escolarização). Dito de outro modo, essa sensação de que não estamos todos falando a mesma língua talvez indique que nosso dicionário esteja se expandido. Cabe ajustar os ponteiros e tentar fazer com que essas mudanças não apaguem o passado e a memória das gerações anteriores. 

Um outro aspecto – diríamos até positivo – dessas frustrações e as mudanças que elas sinalizam é que as rachaduras que elas criam pode ser uma forma de desmontar alguns estereótipos. Se por um lado esses desentendimentos partem de imagens problemáticas construídas na cultura e na sociedade sobre o que é a cena BDSM e as pessoas que integram a comunidade, por outro podemos ver também nisso a possibilidade de agregar alguma complexidade às pessoas que fazem parte da cena. Convivendo com puppies, Dominadores, submissos, Mestres, brats, amigas Dominatrix, riggers e bunnies é possível ver um universo de histórias diferentes. Por trás da máscara, das cordas, da jaqueta de couro e do chicote existem histórias e sensibilidades muito variadas. Um dominador que gosta de poesia, um submisso atleta e hiper competitivo, pessoas com talentos variados e histórias de vida igualmente. 

Se essas frustrações que vem sendo alimentadas podem servir a algo bom, que seja para entendermos que como uma cena e uma comunidade, somos pessoas muito diversas. Apesar das nossas manias excêntricas, existem pessoas reais lidando com problemas reais. O Nietsche, um filósofo austríaco que influenciou muitas gerações de pensadores modernos, dizia que "tudo que é profundo ama a máscara", esse parece ser um caso bastante adequado para inserir essa ideia. Que saibamos usar nossas máscaras de forma mais eficiente – e não custa nada exercitar um pouco de bons modos ao se dirigir a alguém superior.

Até a próxima!

terça-feira, 23 de abril de 2019

when you mark someone

The idea of marking goes through every BDSM experience. We talk about them directly or indirectly when we focus on our interest in permanent or momentary marks in our experiences. We also talk about it while feeling the texture of ropes on our skin in bondage, or with a paddle or fingers after a spanking session. It is present as subtle marks that the wax leaves behind on body. These are marks that look like a scar falling apart when we take a shower after a session that involved bodywriting, or even in the cold of needles, catheters and other objects that cross, sew and pierce. These marks are a bodily way of talking about another dimension of the marks we left. This dimension is that of the relationships we build with the people who serve us or who we are serving.

In one of the last texts written here, I said that ultimately there are no dominants without their submissives and servants. Whatever aesthetics you think you are performing as dominant one (caretaker, leather, sadist, controller), this position only makes sense in a particular relationship that involves the expectations and possibilities you have with other people. From my point of view, this is because submission per se is subservience as much as domination per se is arrogance. Nobody does it alone.

In my personal experience, the last few days have been marked by events that make me think about this idea of ​​marking someone. It's been times of farewells, of breaking relationships, releasing collars and letting people go elsewhere, accompanying them in the distance. It is the time of making knots that are looser. And this echoed in me as a sort of obligation to think about which marks I give to the people who came to me, and what it eventually means. I'll illustrate this with a little story.


Sepher, 2019


From May to December 2018 I maintained a fixed relationship with a sub. In general, he was described as a cold and distant person. And in fact, in the beginning, gain his confidence was hard! It required patience, conversation and even a lack of interest in making it a goal. In other words, maybe it was a goal, but one goal among many others. We spent some time together, talking, eating, sharing each other's company. This detachment and coldness were described by other dominants with whom he had contact. What these dominants might not have known was how this ice wall was being built in his experience and how it affects other actual experiences.

Being with him was one of the most thought-provoking and constructive experiences of my domineering experience. This is because, in our disinclination to anticipate agreements and contracts, we had time to build a relationship that really made sense within the universe we inhabited. Things were happening in their time, they had the duration and the intensity that, looking from now on, seems to me to be the ones that I demanded to have.

After the electoral period, he decided to return to his home city and live back with his family. I was fortunate to be one of your last visitors here, almost by accident. In January we said goodbye and he went another way.

In telling this I do not want to pretend to be superior to these others dominants. Rather, I wanna illustrate how hurry makes us distance from people we care about. By giving time to know someone else's story, we not only allow ourselves to know this particular person but also create a more fertile environment for our desires and fetishes. It is about intimacy, and each relation requires a certain quality of time to be truly meaningful.

It is not always the heavy hand or tight knot that hurts, or as my mother used to say, indifference is the queen of barbarism. There are many reasons why someone comes into the world of BDSM and explores the limits of desire and body through strength and pain. As regular people, there are in many of us that lived painful experiences. And these experiences activate many layers of meaning when you must remember. These are layers of fear, of passion. Some of us are prepared to remember, and others may no, so we need to construct a way to pass through these memories. I am convinced that the interest in strength for the majority of people I have known is more the possibility of recognizing oneself in an environment where the boundaries are clear than in a toxic and harmful logic of transforming suffering into excitation. However, this has an effect that needs to be better equalized in our relationships. 

Being with someone, for whatever moments, is being responsible for a relationship. When we cross that boundary of the other's world, we also become part of this world. In this common world, the boundaries may even be clear in terms of limits established about strength and violence, freedom and servitude. But pain and pleasure, humiliation and glory, marks and scars continually overlap this idea of controlled limits. We invariably leave marks on the bodies of others just as others leave their own on ours. Anyway, even using force, one must have some delicacy when it comes to walking among the pains of others.

Anyway, that's it. Nobody does it alone.

As marcas que deixamos

A ideia das marcas atravessa toda experiência de BDSM. Falamos sobre elas direta ou indiretamente quando nos posicionamos sobre nosso interesse em marcas permanentes ou momentâneas, em nossas experiências quando sentimos a textura da corda marcada na pele, de uma palmatória ou dos dedos após uma sessão de spanking, das marcas sutis que a cera deixa no corpo. São as marcas que ficam como uma cicatriz que se desfaz quando tomamos banho após uma sessão ou cena que envolve bodywriting, ou mesmo no frio das agulhas, dos catéteres e outros objetos que atravessam, costuram e perfuram. Pensar nessas marcas é uma forma mais ou menos corporal de falar sobre outra dimensão das marcas. Essa dimensão é a das relações que construímos com as pessoas que nos servem ou aquem servimos.

Em um dos últimos textos escritos aqui, há pouco mais de um mês, eu falava que em última instância não existem dominadores sem seus submissos e servos. Seja qual for a estética que você pense para si enquanto dominador (cuidador, couro, sádico, controlador, enfim), essa posição só faz sentido em uma determinada relação que envolve as expectativas e as possibilidades que se tem junto a outras pessoas. Isso porque, do meu ponto de vista, submissão per si é subserviência tanto quanto dominação per si é arrogância. Ninguém se faz sozinho.

Os últimos tempos  pra mim tem sido marcados por uma série de eventos que me fazem pensar nessa ideia de marcas. Tem sido tempos de despedidas, de desfazer relações e deixar que as pessoas sigam para outros rumos, acompanhá-las ao longe e liberar coleiras, fazer nós que sejam mais frouxos. Isso tem ecoado em mim como uma espécie de obrigação de pensar sobre quais marcas deixo nas pessoas que chegaram a mim e o que isso eventualmente signifique. Vou ilustrar isso com uma pequena história.

Sepher, 2019 

Entre maio e dezembro de 2018 mantive uma relação fixa com um sub. Em geral ele tendia a ser descrito como frio, distante. E de fato, no início conquistar a confiança dele foi um exercício penoso, que exigiu paciência, conversa e até um certo desinteresse em fazer com que isso se tornasse uma meta. Melhor dizendo, talvez fosse uma meta, mas uma entre tantas. Passávamos algum tempo juntos, conversando, comendo, partilhando a companhia um do outro. Esse distanciamento e frieza era descrito por outros doms com os quais ele teve contato. O que esses doms talvez não soubessem, o tivessem pouco interesse em saber era como essa parede foi se construindo, quiçá apressados que estavam com qualquer outra coisa.

Estar com ele foi uma das experiências mais instigantes e construtivas da minha experiência como dominador. Isso porque na nossa displicência de antecipar os acordos e contratos, tivemos tempo de construir uma relação que realmente fez sentido dentro do universo em que habitávamos. As coisas iam acontecendo no seu tempo, tinham a duração e a intensidade que, olhando de agora, me parece que foram as que demandava ter.

Após o período eleitoral ele resolveu voltar para sua cidade de origem. Tive a sorte de, quase por acaso, ser uma das suas últimas visitas ainda aqui. Em janeiro nos despedimos e ele seguiu um outro caminho. 

Ao contar isso não quero ter a pretensão de me colocar como superior a esses outros, mas antes de falar sobre como a pressa às vezes nos afasta das pessoas. Ao dar tempo pra conhecer a história de alguém não apenas nos permitimos conhecer alguém, como também se cria um ambiente mais seguro e fértil para que nossos desejos e fetiches tomem forma. 

Nem sempre é a mão pesada ou o nó apertado que machuca, ou como dizia minha mãe, a indiferença é a rainha da barbárie. Há muitas razões pelas quais alguém chega ao mundo do BDSM e explora os limites do desejo e do corpo através da força e da dor. Há em muitos de nós, na condição de pessoas, o contato com experiências doloridas, com memórias que ativam muitas camadas de significado, de medo, de paixão. Tenho a convicção de que o interesse na força para a maioria das pessoas que conheci é mais a possibilidade de se reconhecer em um ambiente onde os limites são claros do que em uma lógica meio tóxica e danosa de transformar sofrimento em tesão. Contudo, isso tem um efeito que precisa ser melhor equalizado em nossas relações. Estar com alguém, por momentos que seja, é ser reponsável por uma relação. Ao atravessarmos esse limite do mundo do outro, nos tornamos também parte desse mundo onde os limites podem até ser claros, mas dor e prazer, humilhação e glória, marcas e cicatrizes se sobrepõem continuamente. Invariavelmente deixamos marcas nos corpos dos outros, assim como os outros deixam as suas próprias nos nossos. Enfim, mesmo usando da força, há que se ter alguma delicadeza quando se trata de caminhar entre as dores dos outros.

Enfim, é isso. Ninguém se faz sozinho.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Servidão marcada na pele

No universo das possibilidades de experimentar o BDSM existem coisas que atravessam mundos. O bondage, por exemplo. Nos dois  últimos textos penso ter delineado um pouco sobre como esse processo se dá. A ilustração do caso do shibari (uma expressão ou técnica específica para bondage) é clara nesse sentido: esteve presente na história das tecnologias de punião do Japão desde o séxulo XVII, no imaginário pornográfico que atravessou o Pacífico após a Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, também em formas de expressão artística que apesar de flertarem com o erotismo, não necessariamente constituiem formas de experiência erótica. Das técnicas de cultivo e construção naval para as masmorras, o bondage foi se adaptando às pessoas que vieram na possibilidade de imobilização algo excitante, e com isso também foi transformando-se. Mas não é sobre shibari ou qualquer outra forma de bondage que esse texto trata. É sobre bodywriting.

Bodywriting in #78


Bodywriting, como o nome indica, diz respeito ao uso corporal da escrita, ou mais especificamente, a escrever no corpo de alguém. Talvez não seja o fetiche ou interesse mais profícuo na cena BDSM, em especial a brasileira, mas reserva algumas ideias interessantes. Como sempre, vamos começar com uma história.

O livro de cabeceira é um filme de Peter Greenaway. Esse filme foi especialmente importante pra mim como pessoa apaixonada pelo mundo do cinema e também pela escrita. Desde pequeno tenho memórias de mim mesmo envolvido com esses dois universos, e O Livro de Cabeceira é uma síntese orgiástica desses dois mundos. No filme, Greenaway conta a história de Nagiko, uma moça criada pelo pai e sua irmã em uma família tradicional japonesa. O mote do filme é fundamentalmente pensar o corpo como um livro, um lugar onde as histórias são escritas e inscritas, ou seja, como um espaço onde as coisas são registradas, mas também como um espaço a partir do qual as coisas podem tomar forma. Nesse sentido, a cada ano no dia do aniversário de Nagiko o pai escreve uma bênção em suas costas e nuca enquanto a tia recita um manuscrito.

Para aqueles afeitos à cultura japonesa, não é surpresa o quanto a caligrafia ocupa um lugar especial na expressão cultural desse povo, sendo considerada coletivamente como uma arte, inclusive. Mais que isso, escrever no corpo de alguém revela algumas ideias interessantes para a forma como eu entendo o BDSM.

No contexto das práticas de BDSM, ainda que  pouco utilizada como uma prática por si, bodywirting tem sido usada como parte de jogos de humilhação, de cornear alguém e seu sentido é deduzido mais como efeito desses momentos do que com uma experiência em si. Isso é válido, e mostra um pouco da versatilidade que se pode construir em uma relação de dominação quando alguém tem uma caneta e o controle sobre alguém. Mas há mais.

Aos 16 anos tive minha primeira experiência com algo que poderíamos chamar de BDSM, contudo foi há cerca de 8 anos que eu me vi de fato consciente e explicitamente comprometido com o que isso implica. Esse tempo em mim foi marcado por uma série de mudanças complexas, mas que fazem de mim quem eu sou hoje. Sair de casa, trabalhar, cuidar do cotidiano, cuidar de si. O BDSM foi uma porta de acesso para que eu entendesse e conseguisse encontrar um lugar possível pro que me animava como pessoa. Fundamentalmete foi minha forma de entender quem eu sou como pessoa, incluindo o que há de bonito e o que me assusta, o que eu gosto em mim e aquilo com o que eu tenho de aprender a conviver.

Assim, entendo que BDSM é uma forma de se relacionar com o próprio corpo com a ajuda do outro. Uma relação entre mestre e servo, ou entre dom e sub é substancialmente uma forma de aprender sobre os próprios limites em parceria, reconhecendo e continuamente explorando nossos sentidos de dor e de glória. Nesse processo alguns gestos em especial ganham especial significado pra cada pessoa. O momento em que a corda aperta e encontra o limite da pele para um bunnyboy deve ser tão excitante quanto é o primeiro contato de uma cinta ou da própria palma da mão para um mestre sádico. Essas são formas supremas e quase consensuais desses pequenos momentos de glória que atravessa cada um de nós quando vemos o pelo arrepiar e o olho sutilmente ir fechando-se, levando todo o corpo para um outro plano de experiência. E é isso que eu sinto quando tenho uma caneta em mãos e atravesso o corpo de alguém com ela.

autorretrato corpolivro | novembro/2018


Escrever é minha forma particular de compartilhar minha intimidade com o mundo. O bodywriting pra mim é como uma sobremesa que no fim do jantar dignifica uma refeição completa e tudo que ela significa. É o momento de intimidade onde um dom e seus subs, ou um mestre e seus servos compartilham um segredo que se estende na duração do tempo da tinta, na tentativa de entender o que está sendo escrito muitas vezes aquém do que se vê no momento.

Os subs e servos que tenho são o que há de mais significativo na minha posição como mestre. São uma espécie de tesouro.  Sempre que escrevo algo no corpo de algum deles tende a ser algo que escapa o planeado, como uma espécie de agradecimento e dignificação de uma relação que faz com que ambos possam ir além. Escrever no corpo de alguém é uma espécie de bondage, no sentido que requer algo como confiança e sensibilidade, não no sentido próprio da segurança ou do controle para que a exposição e a vulneralidade não se tornem risco, mas porque ao escrever em alguém os limites dos corpos ficam por algum momento borrado, e é preciso delicadeza quando se chega ao corpo de alguém.

Assim como o BDSM é uma forma particular de entender e se relacionar com o próprio corpo, cada um pode explorar suas possibilidades através das linguagens e da forma como cada técnica se apresenta na sua própria história. Eu tenho a graça e a sorte de ter uma memória, e a escrita talvez seja o maior instrumento da memória. Agora só me resta escrever. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O que faz um dominador?

O que faz de alguém um dominador é uma pergunta que nunca sai da minha cabeça. Isso porque se dominação é um eixo organizador do BDSM, não existe exatamente uma instância de controle que certifique alguém como "dominador de fato". A não certificação em certa medida é nossa salvação, afinal, poderíamos dizer que existem tantos tipos de dominador quanto pessoas que se chamam dessa forma. Em todo caso, não dá pra abrir mão de pensar os efeitos que isso tem sobre situações concretas. Pensemos com situações.

Tank e Dylan Hafertepen são nomes conhecidos no cenário BDSM internacional. Caso você não os conheça, quiça uma busca rápida ao google te leve direto às notícias sobre a morte de Tank. Dylan se tornou famoso pelos inúmeros procedimentos cirúrgicos e pela utilização de esteróides de modo a adequar o seu corpo a proporções mais volumosas. Seu pretensão era de uma silueta ursina musculosa notabilizada pelas coxas e braços volumosos e o tronco reto. Dylan tinha uma espécie de harém com subs que também adotavam a mesma estética e, provavelmente, com práticas similares. No final de 2018, a relação de Tank e Dylan ganhou as páginas dos notíciários em razão do falecimendo de Tank após injetar silicone nos testículos, prática adotada por Dylan e outros do grupo. Segundo noticiado em diversos canais, além de rumores e comentários, as injeções de silicone eram recomendações de Dylan que além disso mantia outras práticas consideradas persecutórias e abusivas com seus subs.O BuzzFeed escreveu uma reportagem relatando de forma mais detalhada o ocorrido, e caso queira lê-la, basta vir aqui.

Uma segunda cena, dessa vez mais curta, é um debate que acompanhei no FetLife. Para aqueles que não conhecem, o FetLife é uma rede social fetichista que concilia ferramentas como grupos de discussão baseado no compartilhamento de interesses, além de perfis pessoais de pessoas de vários lugares do mundo que tem interesse em práticas fetichistas e BDSM. Em muitos aspectos é semelhante ao Orkut ou ao Facebook, com a vantagem de não ter parentes, de você poder criar redes de vinculação mais flexíveis (rope families, clans, ter múltiplos parceiros por exemplo) além de permitir possibilidades de autoidentificação em termos de gênero, orientação sexual e interesses. A maior parte das informações circula em inglês e aqui no Brasil ainda há poucos usuários. De todo modo é um espaço interessante pra se pensar e ver como outras pessoas discutem aspectos interesantes de suas experiências, além de registrá-las. Em um desses debates que me chegou de modo quase aleatório, uma moça submissa escrevia sobre a noção de 'masculinidade tóxica' (se você não sabe de que se trata, clique aqui). Com base em um critério linguístico ela argmentava que esse conceito era falso e não podia ser aplicado porque no fim não se poderia ou deveria adjetivar pessoas com formas de classificação desse gênero, usualmente atribuídas a coisas. Os comentários se replicavam chegando a quase uma centena. Muito deles aplaudiam e concordavam, pessoas com diversas formas de identificação, fossem mais propensas a uma postura mais ativa, fossem propensas a algo mais passivo. Poucos se opunham ao comentário.

Por fim, uma terceira situação ocorreu ainda essa semana, dessa vez pelo Instagram. Em uma de suas sessões de perguntas e respostas o Marcus respondia a pergunta de uma pessoa perguntando se haviam homens dominadores passivos no Brasil. A resposta muito cortês e educada foi de que sim, bastava procurar e ser um pouco paciente, já que não seria a combinação mais comum de encontrar. 

O que essas três situações tem em comum? Em que medida elas podem ajudar a responder a pergunta lá no começo? Bem... de modo imediato poderíamos dizer que elas falam sobre as ideias que temos sobre o que signifique ser dominador, mas em última instância elas também dizem muito sobre o que entendemos como um homem deva se comportar. 

Petraios & Sepher | Junho/2018

Em alguns momentos devo ter repetido aqui que o modo como entendo BDSM é como uma espécie de erotização do poder. Em miúdos isso significa que quando algo que chamamos de BDSM nos excita, parte disso é pela suposição de ordem e controle, de que alguém está a cargo da situação ou sendo coagida por ela. É isso que em alguma medida faz com que pensemos que um submisso que se excita em ser desumanizado e um dominador que se coloca como o homem mais poderoso no fim das contas estejam falando sobre a mesma coisa. Mas isso é também o que faz com que figuras como dominatrix sejam tão fascinantes, afinal, quando se trata de subversão, algo só é excitável quando entende-se que a ordem do mundo concreto é de outro tipo, daí mulheres trantando homems como coisas ser algo excitável só faz sentido quando se supõe que a ordem social no mundo exterior opera de modo contrário. Um dominador ou uma dominatrix, nesse quadro geral é alguém que representa a condensação máxima de controle. E é esse o ponto que nos interessa aqui. Quais as responsabilidades que assumir o controle de algo sugere?

Com a popularização do BDSM nos últimos tempos tem ocorrido a sensação de que o número de dominadores - e talvez também de submissos e submissas  tem aumentado. Se isso é verdade ou apenas efeito da possibilidade de encontrar essas pessoas, é algo a se discutir. O fato é que mais gente se reconhecendo dessa forma significa mais gente disposta a tentar formas de sexualidade não tão habituais da nossa tacanha educação sexual e de gênero, mas também significa que eventualmente estejamos chamando de dominação um certo conjunto de comportamentos que são apenas violentos e grosseiros. Quem lê as postagens aqui já deve ter entendido minha posição a esse respeito. Caso não, é bom voltar algumas postagens e acompanhar, mas em resumo, se trata de buscar o que diferencia práticas sexuais extremas e violentas de práticas com posições hierarquizadas e de erotização da força e controle. Falo isso com a intuição quase convicta de que certas pessoas que se pensam como dominadores talvez sejam apenas escrotas e sem noção, e poderíamos dizer o mesmo para submissos, talvez.

Desautorizar alguém na sua possibilidade de autorreconhecimento como dominador ou submisso não significa rejeitar que o que ela esteja fazendo ao exercer sua sexualidade seja inadequado. Com isso quero dizer que qualquer prática deve prezervar a possibilidade de diálogo e construção conjunta entre dominador e submisso. Os acordos são a principal riqueza e segurança de uma prática, de modo que se é de consensual entre as partes a adoção de uma conduta específica não há muito o que objetar. Apenas tome as providências para que isso seja realizado da forma mais segura e sã possível. Mas nem sempre isso parece acontecer. E é aí que devemos estar alertas. Uma das coisas que faz com que eu me sinta seguro e tranquilo em relação ao BDSM é a convicção de que uma negativa sempre vai funcionar. Quando eu digo ou um sub ligado a mim diz não ter interesse em uma prática, isso significa que naquelas circustâncias e momentos é fora de cogitação que isso possa acontecer entre as pessoas envolvidas. "Acordos" não acordados não prezam por esse princípio e podem machucar e expor as partes a situações de risco, e mesmo certas situações de risco estabelecidas como consensuais devem ser pensadas em seus limites. Entre sugerir a seus subs uma certa estética corporal e expô-los a situações de vulnerabilidade e perigo há um limite nem sempre claro, de modo que precismos estar atentos e sermos responsáveis.

Soa um pouco clichê e demasiado "desconstruído", mas as ideias de consensualidade e segurança são bases fundamentais, clássicas e atuais para qualquer prática BDSM. São elas que garantes o aspecto são de uma experiência. O que faz de alguém dominador talvez deva ser o grau de comprometimento e responsabilidade que ele demonstra ter com aqueles que se submetem e o respeitam, isso porque é sua função principal como criador de uma experiência, mas também porque acreditem ou não, não existe dominador sem submisso. Precisamos posivitar as nossas ideias de hierarquia e entender que mesmo um dominador só é dominador em certas situações e momentos que devem ser estabelecidos entre aqueles que cabem. No fim, se temos tantos dominadores atualmente, esse pânico numérico devesse ceder à ideia de que todo dominador é dominador para um certo alguém, não para todos. 

sábado, 19 de janeiro de 2019

lien (un exercise de poèsie)

Ses bras étaient bleus
les pieds sous le sable
ses sentiments se sont effondrés
courait une rivière du bord de vos yeux

sous le clair de la lune
de toutes les nuits
Je m'étriens
et m'occupe de sa vie

Quand il tombait
Je prendrais toutes mes cordes
et au cas où il n'y avait pas d'espoir
Je lui ai dit d'être sous mes ailes

mot par mot
j'attrape tous ses vêtements
les mets dans un vase
et j'appelle ce coeur

Quand la faiblesse est près de toi
le meilleur moyen de devenir fort
se repose dans le coeur de votre maître

chaque veine
rempli de liens

liés ensemble
comme deux mains
fort
comme un coeur de granit

{"lieu", 16.01.2019 | M.P}

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Kinbaku - uma breve história do bondage japonês

Dando continuidade ao debate sobre técnicas de bondage, nesse post apresento uma tradução de um artigo publicado na Vice que sintetiza alguns aspectos da história e elementos do Kinbaku, ou como se costuma falar, o shibari. 

Apesar de eventualmente serem usados como sinônimos, essas duas palavras remetem a concepções diferentes sobre a expressão japonesa do bondage. Kinbaku é a transliteração da palavra japonesa  緊縛, que conforme os dicionários consultados é marcado como substantivo e refere-se a duas coisas: (a) em um sentido estrito, kinbaku é o efeito de algo que é amarrado de forma apertada, forte; e, (b), em um sentido mais amplo, ele se refere ao aspecto emocional de estar amarrado. Já shibari apresenta-se tanto como verbo e como substantivo. É a transliteração de  縛 que significa "amarra" ou "amarrar", agrupar algo a partir de uma ligação, conforme os dicionários.

As distinções entre shibari e kinbaku são importantes de serem apreendidas tendo em vista que, em sua dimensão mais precisa, a noção japonesa da prática tal como experimentada por essas pessoas diz respeito não apenas a um conjunto de procedimentos técnicos, mas de fato à construção de uma atmosfera onde uma certa experiência pode ser possível. O artigo apresenta algumas dessas questões. 

Assim como nas demais traduções, optei por fazer alguns recortes e reformulações quando necessário tendo em vista que o propósito aqui não é exatamente o mesmo daquele publicado pela Vice. Caso queira ler a versão em inglês, clique aqui. Considerando que o universo das sociedade e cultura japonesa podem ser um tanto distante para alguns dos leitores, tanto como possível tentei aproximar as referências, por vezes através de glosas ou adaptações de termos que fazem referência a momentos, contextos, pessoas e estéticas específicas, quanto através de links que podem encaminhar à visualização ou leitura a partir de outras fontes. Agora, divirtam-se!

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Uma breve história do Kinbaku

Alinhamentos rígidos, design complexos e nós que fariam qualquer marinheiro corar estão juntos na arte do Kinbaku, o bondage erótico japonês. A prática está presente em esculturas, performances e danças a dois; mais que isso, atualmente você não pode ser fetichista sem tê-la visto. Artistas e entusiastas tem adotado a prática, trazendo doses dela para o público através de revistas de moda e galerias de arte, por exemplo. Uma busca rápida pela hashtag #kinbaku no Instagram reporta uma rolagem extensa, com mais de 60.000 fotos marcadas.

Para o não iniciado, Kinbaku pode ser visto como a última tendência pop no BDSM, mas a tradição Kinbaku estende-se por séculos antes de chegar aos buracos e lastros mais pervertidos das redes sociais. Os antecedentes históricos incluem as representações na Shunga, a arte erótica japonesa usada como forma de educação sexual para recém-casados, assim como aparece também no Shijuhatte, a versão japonesa do Kama Sutra. A ilustração "O Sonho da esposa do pescador", datado  do início do século XIX e de autoria de Katsushida Hokusai, é uma referência icônica à arte japonesa dos nós em corda. Essa espécie de xilogravura bastante típica do ukiyo-e (traduzido em português como 'pinturas-brocado), uma forma de expressão dos modos de vida urbanos do momento, apresenta o êxtase de uma mulher tomada por um polvo. Os tentáculos do animal simultaneamente estimulam e se entrelaçam ao corpo da mulher, assemelhando-se a uma espécie de corda.

O sonho da esposa do pescador, Katsushika Hokusai, 1814

Assim como as ferramentas ocidentais de subjugação passaram a ser sujeito nas elaboração das fantasias, as cordas tiveram um padrão de expressão semelhante. As correntes usadas para ancorar donzelas em perigo nos contos de fada ocidentais encontram seu correlato na corda que subjuga os prisioneiros no folclore japonês. Em um texto central sobre o assunto, Master K, professor e autor do livro "The Beauty of Kinbaku" explica que shibari, o termo geral para a amarração em corda, teve uma miríade de práticas e funções decorativas ao longo da história do Japão, nas oferendas rituais xintoístas, nas competições de sumô e na tradição do quimono. Sua adoção em um contexto de prática erótica é simplesmente uma outra aplicação das cordas - uma ferramenta inextrincável da própria cultura japonesa. 
Durante a era Edo, a classe samurai dominante usava cordas em combate e para conter prisioneiros de guerra em uma arte marcial chamada 'hojojutso', uma prática brutal que tem alguma proximidade com o kinbaku contemporâneo. Naquele período, entre os séculos XVII e XIX, as leis criminais oficiais do xogunato Tokugawa usavam nós para torturar e exortar a confissão da cativos, assim como exibir supostos criminosos. Na exibição pública, correlacionava-se de forma legível o tipo criminal e a amarração a ser utilizada na administração da pena, de modo que se criar uma advertência clara para a multidão de observadores. 
No começo do século XX, o teatro kinbaku começou a adotar nós em corda em uma forma estética e performática elevada, apresentando os primórdios disso que hoje reconhecemos como kinbaku. A técnica do hojojutso foi reimaginada, assim os atores poderiam recriar os movimentos de forma segura no palco, resenhando-a em uma estética mais encorpada e dando ao público uma experiência visual mais proeminente.
Após a Segunda Guerra Mundial, as revistas fetichistas nos dois lados do Pacífico passaram a apresentar registros provocativos de kinbaku, primeiro em ilustração e depois através de fotos. Revistas populares como Kitan Club e Uramado eram trocadas com os mastros fundadores do underground americano, como a revista Bizarra, começando a polinização cruzada entre duas culturas fetichistas do globo, o que persiste até hoje. 
"Ten tied woman", dez mulheres amarradas, ilustração de Kitan Reiko.
A ilustração compõe uma das edições da revista Kitan Club, datada de 1952

Para um olho não treinado, no fim o Kinbaku não parece tão diferente daquele de suas raízes nas práticas de tortura; contudo, adeptos exaltam as virtudes e prazeres do "sub space" no qual um parceiro submisso acessar um estado meditativo altamente terapêutico - encontrando assim, como mencionado por muitos entusiastas dizem, libertação na restrição. "Quando feito de maneira adequada, kinbaku não é doloroso. É completamente sensual", diz Master K em uma entrevista. Conforme argumenta, a prática estimula zonas erógenas, liberando endorfina e dopamina para o cérebro de modo que, continua, "você pode sair de uma sessão de kinbaku sentindo cada parte sua relaxada assim como se tivesse acabado de sair de uma sessão de hot yoga".

Cordas - introdução e modos de usar

No conjunto de práticas que me interessa de forma mais íntima, o bondage é sem dúvidas aquela pela qual tenho maior predileção. De forma geral, bondage reúne una série de práticas e cenas nas quais o interesse é a contenção de alguém, sua imobilização e restrição ao movimento. Ao pensar em bondage é comum que a associação mais imediata seja com as cenas de captura, onde alguém está imobilizado. Em uma cena erótica, a imagem da imobilização é feita usualmente através de cordas.

Existem tantas formas como meios para executar bondage quanto a imaginação permitir. Se lembrarmos que o princípio básico é restringir o movimento, isso pode ser feito com auxílio de cordas, correntes, tecidos (lençóis e bandanas, por exemplo), algemas, além de fitas de alta resistência.

Corda em sisal (Paraíba, 2017)

Bondage, desde minha perspectiva, talvez seja o elemento mais sofisticado do BDSM, não apenas porque demanda um certo aparato de instrumentos para ser realizado, mas também porque para ser significativo e bem realizado requer que se abandone a lógica das sessões eventuais com pessoas aleatórias. Talvez você encontre algum prazer nessa dinâmica, mas nada substitui a possibilidade de se vincular a alguém e construir uma relação de confiança e intimidade que permita a adoção de práticas onde a posição indefesa e as lógicas de cuidado são tão profundas. Eu costumo dizer que amarrar alguém, seja por quais métodos forem, é entregar-se ao controle e aos interesses que nem está com o controle, é expor sua vulnerabilidade e se deixar ser cuidado. Isso requer confiança, intimidade e sensibilidade de ambas as partes, acordos claros e compromisso de cumpri-los.

O objetivo final de uma prática de bondage não costuma ser propriamente a imobilização; ao contrário, se trata de conter e controlar o parceiro a partir da imobilização. Imobilizar alguém é um meio para um fim alternativo, não o fim em si. O fim pode ser um castigo ou recompensa, disciplinamento, suspensão, exaustão física, controle de estímulos, enfim. A criatividade está aí no mundo pra ser explorada.

O propósito desse texto é introduzir alguns aspectos relativos às práticas de bondage e aqui minha atenção inicia recai sobre o elemento mais imediato de qualquer pessoa que pense nisso: as cordas. Vamos falar sobre alguns aspectos técnicos e de composição que dizem respeito a como elas são incorporadas em uma experiência fetichista.


O que é uma corda e como ela é feita?
A pergunta pode parecer boba, mas entender o que é uma corda é importante no contexto de práticas onde se demanda as propriedades que uma corda supõe ter. De maneira mais simples, uma corda é a combinação de fibras vegetais ou sintéticas que são torcidas e trançadas umas às outras. O objetivo da torção é aumentar a resistência da fibra, bem como seu cumprimento já que pequenos pedaços podem compor uma unidade maior.

A depender do tipo de fibra usada, a corda pode ter um tempo de vida maior ou menor. Quando se trata de fibras sintéticas, é mais comum que se utilizem combinações ou porções pura de nylon, poliéster e polipropileno. Já as fibras naturais incluem sisal, cânhamo, juta, algodão, juta e linho. Há também a possibilidade de fazer cordas secundárias, utilizado fibras trançadas para outros fins, como acontece com cordas de seda e cetim, usualmente feitas a com fibras produzidas para ser usadas como tecido e que podem ser trançadas com o aspecto estético e funcional de cordas.

Essas são as cordas que costumo usar com mais frequência. Aqui se vê cordas prontas e trançáveis.
Na sequência: tecido em cetim para trançar cordas, cordas em algodão 8mm, corda de poliamida e sisal.
Conforme o material utilizado para compor a corda, é necessário também a incorporação de outros procedimentos além da própria torção ou trançamento. Esses procedimentos podem ser prévios (como o cozimento da fibra e sua secagem) ou posteriores (quando precisa-se encerar os cordames ou mesmo a corda toda para nivelar a incorporação dos filamentos).

Tipos de corda
É comum que em termos técnicos as cordas sejam chamadas de "cordame", ou cabos. Isso se dá, geralmente, em função do contexto para o qual as cordas são usualmente produzidas em sua maioria: a pesca. Isso cria também as formas de classificação pelo qual elas são organizadas. Essa classificação é feita com base no diâmetro do cordame (usualmente indicada em milímetros) que pode ir de menos de meio centímetro até mais de quatro centímetros. Nesse contexto, são consideradas verdadeiramente cordas aquelas com diâmetro entre 1,3 a 3,8 cm. As menores que isso são chamadas de cordão, e as maiores de amarra.

Além da classificação em virtude do diâmetro, outra forma de classificar as cordas é em virtude das técnicas de torção ou trançado utilizadas na produção. Essa aliás é a primeira forma de divisão: cordas torcidas e cordas trançadas.

As cordas torcidas costumam ser compostas por milhares de filamentos que são ajuntados e retorcidos uns aos outros, criando assim uma maior resistência. A diferenciação entre esses tipos de corda é em virtude da quantidade de "pernas", o que pode ser percebido olhando as pontas.

As cordas trançadas são aquelas feitas através da composição da fibra e seu aglutinamento em um sistema de intercalamento. Aqui as formas de classificação interna são maiores: com ou sem alma (a depender do preenchimento do núcleo interior com algum filamento), com alma e alerta visual (caso de cordas que tem alguma função específica de sinalização, onde o padrão estético é parte das suas características) e cordas para fins especiais (em esportes como vela, escalada, ou em atividades marítimas e de pesca específicas). Caso queira saber mais sobre esse aspecto no caso de cordas para uso naval, confira esse link, aí estão ilustrados os principais tipos de corda e as diferenças entre elas.


Como escolher e encontrar cordas
Atualmente a maior parte das cordas que consumimos é feita para fins de pesca ou para compor mecanismos e equipamentos de construção, como roldanas e elevadores mecânicos simplificados. Isso, em alguma medida, nos ajuda a entender quais os limites uma determinada corda pode ter e sua adequação ou não para um uso entre pessoas humanas. Suponha que você vá a uma casa de construção em busca de uma corda. Para esse fim é comum que se adotem materiais sintéticos, que além de baratear o processo de construção da corda, também viabiliza resistência às altas cargas e necessidade de tração que esses contextos demandam. Contudo, quando se trata de uma artesania como o bondage, essas cordas sintéticas podem machucar, criar ferimentos e incômodo no corpo da pessoa amarrada.

Para práticas de bondage, é mais comum adotar cordas de juta, sisal, cânhamo e algodão. As de algodão são sem dúvidas as mais fáceis de achar, eventualmente as mais baratas além de possibilitar uma maior variedade em termos de coloração, criando efeitos estéticos interessantes. Na relação entre custo e benefício, elas tem uma durabilidade razoável, são fáceis de encontrar, resistentes e leves. As de juta, contudo, são as melhores cordas por agregarem um conjunto de qualidades superior, entre elas a resistência e conforto, mesmo que não sejam as mais baratas.

Os principais aspectos a se considerar ao escolher uma corda são o material e o diâmetro. Ambos quando combinados garantirão a segurança da prática. Nesse aspecto, esteja atento a de que forma você pretende usar e que tipo de corda é mais indicada. Quando se trata de fibra, as naturais são sempre mais indicadas. Aquelas confeccionadas com juta, algodão e seda são as mais usadas no contexto das práticas de bondage pois além dos efeitos estéticos, tem maior durabilidade e resistência. Considere que quanto maior a necessidade de resistência, maior terá de ser o diâmetro da corda, sendo assim, se é possível usar cordas com diâmetro restrito em práticas de imobilização simples, uma experiência de suspensão demandará diâmetros maiores e materiais mais resistentes.

Considere também o tempo de duração da exposição à corda. A torção e a marca da corda na pele ainda que seja excitantes podem incomodar após certo período a depender do material e do próprio nível de conforto da pessoa amarrada.

Uma última nota. Pode parecer incrível, mas as cordas não foram confeccionadas para nós. Os nós são a principal característica do uso fetichista em técnicas como kibanku oki, mas a depender da fibra no qual eles são feitos, ele reduz a resistência da corda em até 40%, de modo que é preciso estar atento ao equilíbrio entre material, uso, resistência e contexto.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Castidade masculina para iniciantes

as viagens se fazem para dentro
Henry Miller

Já há algum tempo tenho estado demasiado ocupado a ponto de não conseguir dar conta de finalizar alguns textos rabiscados aqui, tampouco de retomar os relatos dos últimos acontecimentos e encontros que tenho tido. Em breve estarei de volta com isso, mas até lá deixo vocês com esse texto sobre formas de se introduzir no universo da castidade para homens. 

Old Rusty Lock, de Stephanie Sodel
(aquarela sobre papel algodão, 2013)
A ideia de castidade me era um tanto estranha até pouco tempo. Era estranha porque, ainda que eu fosse muito bem resolvido em relação à expressão não compulsória de certos costumes que incorporamos como sentidos de "sexo" (ejaculação e penetração, por exemplo), a ideia de ter o controle sobre a possibilidade de excitação/ereção não me estimulava tanto. Contudo, as coisas mudam e na vida cada encontro provoca em nós a possibilidade de se repensar e aprender coisas novas. Foi através de um sub, o #52, que eu comecei a pensar nessa possibilidade. Certo dia, durante um encontro e após termos conversado algumas vezes sobre a questão, ele me apareceu com um dispositivo de castidade reluzente, todo em prata. Já o vestia, e em um colar que envolvia seu pescoço estava o pequeno molho com três minúsculas chaves. Nossa relação já se estendia por alguns meses e nos sentimos confortáveis para transformar nossas leituras e conversas em uma experiência de disciplinamento de minha parte, e submissão por parte dele. Desde então tenho tentado me aprofundar na compreensão de, na posição de dominador e mestre, construir formas de cumplicidade onde a castidade dos meus subs e adoradores seja possível. 

Esse texto é uma introdução a esse debate sobre castidade, submissão, contratos e cumplicidade entre dominadores e seus servos. Ele foi publicado em uma revista eletrônica de uma rede social voltada à BDSM e ao mundo do fetiche, e para lê-lo na sua versão em inglês basta clicar aqui. Optei por fazer alguns cortes de modo a adaptar a leitura para um contexto diferente daquele e também para torná-la mais fluída. Em breve retomo a questão com alguns apontamentos pessoais baseado em minhas experiências para avançarmos mais um pouco.

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Castidade masculina: um guia para iniciantes

Qual é o ato mais extremo de dominação e controle? alguns podem vir a dizer que seja a castidade. Muitos homens submissos curtem estar enjaulados, presos (locked up) em um dispositivo de castidade masculino, ter o orgasmo controlado por seu mestre ou mestra. 

Por onde começar?
Antes de estar preso à ideia de castidade masculina, você precisa estar preparados para alguns aspectos importantes. 

1. Converse com seu dominador/key holder( portador da chave):  Vocês precisam concordar em como as coisas funcionarão. Você poderá ter uma chave também ou apenas seu mestra/sua mestra terá acesso a elas? O que fazer em situações de compromissos de trabalho ou ocasiões familiares?

2. Escolha seu dispositivo
Há muitos estilos diferentes de dispositivos de castidade (cinto, ou "gaiola", como chamada por alguns em  português). Vocês precisarão escolher um que funcione melhor pra vocês. Procure algum que se ajuste a você confortavelmente, especialmente se você vai usá-lo por longos períodos. Você também precisa pensar sobre os aspectos práticos, como ir ao banheiro. Você conseguirá mijar usando a gaiola? A distância é grande o suficiente pra não te criar algum impedimento ou confusão? Você vai querer um com inserção uretral pra tornar mais fácil, ou com qualquer outra brincadeira que agregue camadas à relação de castidade?

3. Avalie os riscos
Não soa nada sexy, mas é essencial ter a melhor experiência de puto - especialmente quando se trata de jogos desse tipo. Pense em como as coisas podem dar errado e se prepare pra isso. Isso é imprescindível se o seu mestre ou key holder não vai estar perto de você todo o tempo. O que você pode fazer em casos de emergência? Você poderá ter uma chave caso precise tirar seu dispositivo de castidade rapidamente? Haverá algum tipo de acordo que permita com que você o retire quando requerido ou se você decidir que já foi o bastante? Talvez você possa ter uma chave reserva em algum lugar para situações emergenciais... quem sabe com um amigo que entenda a dinâmica, em uma caixa fechada com segredo, ou em um lugar, na sua casa mesmo, onde o acesso não seja tão fácil.


Entrando na gaiola, vestindo o cinto (de castidade)
Agora que está preparado, é hora de entrar na gaiola, de usar seu dispositivo de castidade. É melhor tentar começar usando seu dispositivo por curtos períodos de tempo, para ver como você se sente com ele. Use durante uma sessão para experimentar a restrição a um orgasmo, a provocação pela tortura e se acostumar a essas sensações e sentimentos. Daí você poderá fazer ajustes, se necessário.

Quando se acostumar a usar o dispositivo de castidade após alguns sessões, você pode seguir e usá-lo por um período maior de tempo. Verifique se seu dispositivo (e seu pau) está limpo quando estiver sob castidade. É especialmente importante que você limpe o dispositivo após mijar - talvez você não queira mijo alio, permanecendo na peça (a não ser que...). Caso sinta algum beliscão, dormência ou mudança na coloração do seu pênis ou testículo, você deve tirá-lo imediatamente, caso contrário está colocando-se seriamente em risco. E lembre-se da sua palavra de segurança (safeword) e use se necessário. Seu keyholder deve ter uma palavra de segurança também, assim ele pode acabar com a brincadeira caso queira. Ter consentimento de todas as partes envolvidas é essencial!

Castidade masculina não é fantasia
A sua fantasia de castidade pode ser o que tenha te levado a submeter-se a uma experiência desse tipo, mas tenha em mente expectativas realistas sobre o que pode vir a acontecer. Pode não ser exatamente como você espera, mas ainda assim pode ser uma coisa boa. Lembre-se de manter a comunicação com seu mestre key holder e não espere que apenas que ele siga sua fantasia até as últimas consequências. O portador é parte da cena também , e assim suas vontades e desejos também são importantes.  As melhores experiências de castidade e controle de orgasmo virão quando as pessoas envolvidas tiverem decidido o que vai acontecer e comunicado sobre suas expectativas e desejos.

O orgasmo controla a diversão
Quando o/a dominador/a tiver você engaiolado, ele/ela estará no controle do seu prazer. Há muitas formas de jogar que podem levar ao êxtase ou não. Isso depende do que o portador da chave decidir.  Talvez você tenha que agradar seu mestre com sua boca ou dedos, mas sem alívio pra si mesmo! Do contrário, ele ou ela poderá te fazer cócegas ou provocar a sentir uma ereção, forçando o dispositivo e seu pau um contra o outro, já que ali ele vai estar impossibilidade de crescer e sem chances de gozar.

E, é claro, você pode ser ordenado a provocar a si mesmo, assistindo um filme pornô ou lendo contos eróticos, mas sem permissão para gozar. Há muitas formas de jogar, tudo requer um pouco de imaginação - e maldade - do seu key holder.


quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Relato 002 - As partes tomadas

"Madame Bovary c'est moi"
Gustave Flaubert
[leia enquanto escuta essa música]

A primeira imagem que alguém pode ter de São Paulo provavelmente é de uma cidade gigante, repleta de prédios, cinzenta. Uma Gotham City em paleta de cores levemente mais moderada que as reproduzidas pelo cinema. Isso pode ser verdade, mas também esconde a quantidade de encontros por acaso que se pode ter com pessoas conhecidas - isso pra não mencionar os desconhecidos íntimos, aqueles que vemos todo dia sem saber quem são. Isso provavelmente deve ser porque a cidade é uma imagem na cabeça de cada um, e o que se vive de fato são pequenos pedaços, razoavelmente conhecidos pelo cotidiano exercido neles. Os espaços de lazer e diversão, o trabalho, a vizinhança e a família costumam conectar isso. Acrescentemos a isso a curiosidade de que, ao menos no bairro onde vivo, aqui é, entre as cidades que já conheci, um dos poucos lugares onde em aplicativos de geolocalização não consigo ir muito além de 1 km no volume de 50 perfis mais próximos que minha modalidade de conta permite visualizar. 

Essa nota sociológica contudo não serve de muita coisa em si. Ela está aí em virtude de um pequeno causo ocorrido há pouco. Hoje é quinta-feira em uma semana que até ontem havia sido marcada pelo frio e pela chuva. O sol reinou, fazendo com que tivéssemos de fato a prometida primavera.

Estava saindo para resolver pendências de trabalho por volta das 14h. No meu caminho o metrô é um veículo inadiável. Tomei a condução na estação próxima a onde moro e desci na estação seguinte para fazer a baldeação para outra linha que me levaria até meu destino. Pouco depois de embarcar no segundo trem me dou conta de uma figura conhecida. Pele clara, cabelo levemente gris, as mãos firmes, grandes e macias deslizavam a tela do celular simultaneamente se entretendo e ignorando o movimento exterior. Me aproximei, algo dispensável em razão do pouco volume de pessoas no transporte. Queria provocá-lo. Aproximei-me primeiro pelo lado, eventualmente deslizando a coxa pelo seu braço, e logo depois, em frente. Ele permanecia desconcertado, levemente irritado e ignorando o que se passava, fixo à tela. Não reagia de maneira expressiva. Encostei com um chute leve o seu sapato, o que vez com que os olhos grandes e escuros se erguessem de baixo pra cima me observando. Com o dedo indo em direção aos lábios disse para que ficasse calado e dei um riso, enquanto ele corava e esboçava um riso tímido, em resposta. Era 089B, de quem falei no relato anterior.

Perguntei onde estava indo. Disse que estava voltando para casa após uma manhã de reuniões e que teria coisas para continuar fazendo em sua própria casa. Desceria na estação seguinte para ir a um cartório, e logo em seguida retornaria para casa. Ele trabalha como arquiteto e morávamos relativamente próximos, a cerca de duas ou três estações, algo como que dois quilômetros de distância. Sugeri então que fizesse o que tinha de fazer o mais rápido possível e que o esperaria para que tomássemos um café. Combinado feito, ele seguiu enquanto esperei por cerca de quinze minutos até que aparecesse de volta à estação. Estava suado, aparentemente havia corrido para não me deixar esperando. Seguimos até a estação onde e descemos próximo a um centro cultural na vizinhança de onde eu morava. No caminho, mais uma vez permanecia sentado enquanto eventualmente lhe aplicava uns chutes aleatórios sobre o sapato.

Chegamos ao café. Estava cansado e logo após sentarmos coloquei minha perna sobre a sua, do outro lado da cadeira. Assim como dito por sua esposa, a atitude tímida fazia com que se enrubescesse com demasiada facilidade. Imagino que deve ter no lapso de segundos entre estar sentado e perceber minha perna sobre a sua as probabilidades de ser visto por vizinhos, amigos, conhecidos que faziam parte do seu cotidiano ali na redondeza. Mexia as mãos, baixava a cabeça, ansioso. Tomei sua mão, virei o celular contra a mesa e disse que se acalmasse. Nosso pedido chegou e disse para servir nosso café, como havia feito na semana anterior.

Seria inevitável falarmos do nosso encontro anterior; afinal, pouco havíamos conversado desde então. Continuava mantendo comunicação frequente com sua esposa. Perguntei como estava, o que sentiu, se algo o havia perturbado na nosso repentino combinado. Me encantava como suas respostas eram um avanço, a cada informação nova agregava um elemento a mais daquilo que lhe ensinávamos. Em menos de cinco minutos já usava o 'senhor' nas respostas com destreza e proficiência. Também estava mais tranquilo, aparentemente mais excitado e confortável na sua própria pele e posição.

089A era jornalista e havia conhecido o marido durante a universidade, já que estudavam em lugares próximos e tinham amigos em comum. Casaram-se cerca de 3 anos depois de iniciado e namoro e estavam juntos há 9 anos mais. Disse ter curiosidade ao longo dos anos, que sempre tivera uma fascinação por pessoas que lhe estimulavam respeito e obediência. Era o caso da esposa, em muitos aspectos mais deliberativa e cheia de iniciativa. Contudo, dizia também ter curiosidade no contato com homens, o que foi sempre deixado para posteriori, apesar do desembaraço com que conversava com a companheira de anos.

Nosso encontro dias antes, dizia ele, foi um muitos sentidos, dois em especial. O lugar de submissão nos encontros com sua esposa ou outras pessoas, e o encontro com outro homem. Ele estava ali, de surpresa, a serviço de duas figuras que deveria obediência e reconhecia. Dei uma leve tapinha em seu rosto quando falou isso. Um riso tímido, bonito pelo seu aspecto genuíno se fazia no canto da boca. O café havia chegado a seu fim e haveria de devolvê-lo à sua casa.

Fui assaltado pela recorrente ideia de tomar recompensas ou troféus pelas pequenas realizações do dia. Rapidamente vasculhei em minha mochila um envelope. Pedi que levantasse e baixasse um pouco a calça para que visse a cueca. Entreguei o envelope e ordenei então que fosse ao banheiro, tirasse a cueca, depositasse dentro do envelope e a trouxesse até mim. Fez um breve gesto de excitação ou resposta até que, mais uma vez, respondi que ficasse calado levando o dedo aos lábios. Dei um tapa em sua bunda e indiquei o caminho do banheiro.

Enquanto seguia enviei uma mensagem para sua esposa, 089A, dizendo que caso estivesse em casa estaria enviando um presente para ela. Perguntou o que era. Não respondi, disse que em breve descobriria. Nos despedimos e 089B seguiu para casa sem um pedaço de si, que eu agora levo comigo.


Além de me divertir essa história me apresenta algumas das ideias que tenho sobre o que seja dominação, ou sobre o que seja ter alguém como seu servo. O sendo comum e o clichê, como disse em textos anteriores, são o maior problema para a fruição de uma experiência de entrega genuína. Usualmente tratamos violência como se fosse força, vulnerabilização como humilhação e idiotice como demonstração de controle. Ainda que possamos pensar em vários níveis de reconhecimento e construção de uma relação entre um dom e seus servos, as vezes o mais importante é o cotidiano, o aspecto de confiança e de contínuo aprender a obedecer e a dar ordens que estão encarnados em ambos os lados da relação. 

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Relato 001 - "Esses dois"


"Insanity's so personal. It's hard to know who shares our secrets"
Don DeLillo, em The Day Room

089A e 089B são um casal. Estão juntos há cerca de 12 anos. Eles me apareceram meio que por acaso. Ela me procurou em um grupo de discussão. Tinha os olhos pretos muito fundos, miúda e de riso farto. Marcamos um café poucos dias depois próximo ao que seria sua casa, descobri durante nosso encontro. No café os olhos atentos pareciam desconcertados, com frequência colocava os cotovelos sobre a mesa como que insinuando que eu olhasse pouco mais para seu decote. Sabia que ela era casada assim como ela também sabia que eu tinha predileção por meninos. Perguntei o que se passava até que ela disse a real natureza do seu interesse em falar comigo. O marido estava com vontade de "mudar algumas coisas" na relação. Ela tinha interesse, e assim como eu tinha um interesse em uma série de coisas que descrevia como dominação. O sisma era sobre como executá-las. Saímos do café e fomos até sua casa. O marido trabalhava em home office aquele dia. Ela havia avisado que sairíamos para ali perto, até que pouco mais de uma hora e meia depois chegamos os dois.

089B ficou desconcertado. Abriu a porta e me viu. Reconheceu a pessoa transcrita nas fotos que a esposa apresentava. Sorriu - um sorriso misto de ansiedade, tesão e medo, penso eu. A mão fria, quase tremia. Ele não havia tido até então qualquer relação mais íntima com outros homens. E de repente, ali estava sua esposa com um riso sarcástico e um estranho conhecido de poucos dias. Sentamos os dois no sofá. Olhei em seus olhos, ele baixou o rosto. Enquanto falávamos pedi que ele se aproximasse, sentasse no chão próximo a mim. Enquanto falávamos ele ouvia. Eu alisava seu cabelo, eventualmente puxava a pele na altura da nuca. A garganta pigarreava quando pedi a 089B que nos preparasse um café. Ali combinamos nossa estratégia de projeto de domesticação do marido. 

O café chegou, ele voltou a seu lugar. Entre eu e a esposa, ele foi mandado a tirar o sapato da companheira. Entregou em minhas mãos. Terminado o café, 089A trouxe uma camisa de tecido leve. O toque era macio em minhas mãos. Ordenei que levantasse. Virasse de olhos pra parede. Colocamos sobre seus olhos uma venda e o conduzimos até o quarto. Com ajuda de um pedaço de corda que havia disponível na cozinha ensinei a mulher a acomodar seu marido ao pé da cama. Os braços colocados para trás, as costas ajustadas à quina da cama, as pernas juntas em comprimento. Sentei nos ombros de 089B enquanto beijava sua companheira. Tirei sua camisa e acaricie os seios. Eram um tanto caídos denunciando o movimento natural da vida que os fazia simultaneamente macios, tenros e firmes. Enquanto levantava-me a mulher se pôs de joelhos, de costas pra mim e com o rosto frente a frente com o marido que a tudo sentia sem poder ver com os olhos. Ouvia o que falávamos, sentia o cheiro do suor que escorria de mim, do perfume do cabelo já há muito conhecido. Tirei sua saia, a coloquei de pé e com a boceta exposta mandei que sentasse sobre a cara do companheiro.

Tomei para mim uma cadeira e fiquei ali próximo ao casal. Os corpos se contorciam. A mulher eventualmente olhava para mim por cima dos ombros enquanto tinha o corpo do companheiro de anos ali, aparentemente estático desde o pescoço até os pés. Enquanto olhava a mim e despejava o peso do corpo por cima do marido, seus dedos provocavam o limite que o tempo lhes haviam imposto. Redobravam-se tão rápido e profundamente quanto a língua do parceiro parecia ir além e dentro. Seu pau latejava, duro estava como o chão. Eventualmente ao notar um sinal mais brusco deslizava meu próprio pé sobre a genitália lhe ordenando retornar à posição que lhe era devida e reconhecendo a ordem dos prazeres. Como servo, ele deveria privilegiar sua esposa, era dela o prazer e ele um meio para atingi-lo.

A mulher virou de costas assumindo uma posição semelhante à minha poucos minutos antes, sentando sobre o peito marcado de sol do companheiro. Sentou-se sobre o pau do marido, sem se deixar ser penetrada, deixando-o ali entre as suas próprias pernas e meus olhos. Conversávamos enquanto ela acariciava meus pés. Eventualmente ao ouvir alguma palavra do marido lhe dávamos alternadamente um tapa ou soco leve para que recordasse que não havia sido solicitado a participar.

Era um fim de tarde e começo de noite particularmente quentes. Reclamávamos do calor enquanto elogiávamos o suor dos corpos. O marido provocado e intimado ao seu próprio silêncio deixava entrever a atmosfera de excitação. Os pelos enrijecidos, eriçados revelando os perfumes naturais da pele, o saco particularmente inchado pelo peso da companheira por longos minutos sobre sua genitália frágil já estava corado também. Uma lágrima escorria lenta e vagarosa de seus olhos como em sinal de plenitude. Era como se tivesse encontrado em um momento breve e curto o bonito da vida.

Saímos para o banheiro. Aquecemos um pouco a água e logo depois retornei para buscar o companheiro que recobrava seu próprio corpo ainda esmorecido. Ao levantar não exitou abraçar-me. Ali, tendo sua esposa por testemunha ele ainda com uma lágrima vagarosa descendo à altura das bochechas deu-me um beijo tímido e baixinho sussurrou um "obrigado senhor", e recolheu-se no abraço da esposa. Tomamos banhos os três juntos, emulando um genuína intimidade que seria pouco imaginável para três pessoas até poucos instantes desconhecidas entre si.


Voltei pra casa instigado por aquela tenra mistura de café, suor, história e intimidade. E ali iniciei uma nova página de Mapa, meu diário particular que se inicia logo após Suor.