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quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Alimentando frustrações e desfazendo esterótipos

esses jogos perigosos não são de guerra
Leonilson, 1990


O Recon é um dos mecanismos de sociabilidade mais importantes da comunidade de homens fetichistas hoje em dia. Junto com o FetLife ele é um dos espaços que tem propiciado conhecer pessoas, trocar experiências, construir redes de parceria e afeto. Contudo, diferente do Fetlife, o Recon tem a vantagem de ser voltada majoritariamente para homens gays cisgêneros – ou seja, pessoas que ao nascer foram identificadas como homens e se reconhecem como tal. Além disso, nos últimos anos a cena do BDSM tem se expandido. Alguns chamam isso de "efeito 50 tons de cinza", e é provável que de fato o seja. Mas o que eu gostaria de falar nesse texto de retorno ao blog é sobre diferentes formas de frustração que esse tipo de interação vem criando - e como, às vezes, elas podem ser produtivas. 

Caso você não saiba, o Recon é um site e aplicativo destinado a promover encontros entre homens gays e fetichistas dentro da cena BDSM. O site foi criado em 1999 e em 2010 passou a ter um versão pro para aplicativos em formato iOS, popularizando-se pouco tempo depois com as versões experimentais para outras interfaces. Hoje ele é a maior e mais conhecida plataforma voltada para a comunidade. Minha primeira conta no Recon foi criada justamente próximo a esse momento de popularização, em 2015 ou 2016. Era uma época de curiosidade pra mim e também de encontro, um momento em que descobri que não estava tão sozinho quando se tratava de ter ideias "pouco ortodoxas" para viver minha própria sexualidade.

Hoje a plataforma tem mais de 200.000 usuários em todo o mundo. Mas, olhando ao redor, não é como se a comunidade fetichista ou, ao menos a cena BDSM estivesse crescendo – ainda que sem dúvida, em certos lugares ela tenha se tornado mais visível e fortalecido. Parte desse crescimento vem do fato de o aplicativo ter entrado no rol de aplicativos de encontro para homens gays. Assim como o Scruffy, o Grindr, Hornet e outros tantos, o Recon agora faz parte de uma dinâmica mais ampla de procura de parceiros e de exploração da sexualidade.

Antes de continuar é preciso refletir sobre duas coisas. Primeiro, cada um desses aplicativos é experimentado de uma maneira específica por cada pessoa. Provavelmente ao ler isso você intuitivamente reconheça que certos tipos de pessoas ou práticas serão mais facilmente encontradas em um aplicativo do que em outro. Se você procura um cara urso, talvez você imagine que seja mais fácil encontrar alguém assim no Scruffy ou no Growlr, por exemplo. No caso do Recon, a especificidade segue sendo a experiência fetichista, ou de modo muito genérico, um tipo de sexo não convencional. Além disso, um outro aspecto importante de se ter em conta é que é sempre positivo que as pessoas estejam abertas e curiosas para viver e experimentar a sexualidade da forma que melhor lhes convier, desde que respeitem os princípios básicos de consentimento e bom senso. O que me chama atenção, todavia, é que o que seja fetiche e o que seja BDSM, ou a tal "pegada forte", não são coisas tão simples de explicar e de entender. O resultado inevitavelmente é que parece que estamos falando sobre a mesma coisa, quando não,  e com isso criamos e alimentamos frustrações baseadas em nossas próprias suposições.

Jogos Perigosos, Leonilson (1990)



Em ocasiões anteriores já escrevi aqui que BDSM e sexo pesado (hardcore) não são sinônimos. Essa confusão se mescla com uma série de outras projeções fantasiosas do que são a cena BDSM e a comunidade fetichista. É provável que ao pensar em um dominador a imagem que vem à mente seja de um homem vestido em couro, por exemplo. E de fato, ainda que leathermen (as pessoas, em geral os homens, que curtem couro) possam ser dominadores, não é como se essa associação fosse absoluta ou óbvia ao longo da história. De igual maneira, cabe pensar onde se enquadram práticas já frequentes no roteiro atual, como o fisting. Fisting é uma prática de submissão? De disciplina? Onde encaixar no nosso acróstico?

Nesses anos de experiência já tive a oportunidade de conhecer pessoas de várias partes do mundo a partir do Recon. E com isso fui acumulando um repertório de experiências e conhecimentos que me ajudaram a me formar como dominador. Essas experiências não foram todas legais. Em 2019 quando estava em Berlin fui vítima de xenofobia quase uma dezena de vezes por vários usuários europeus. Tantas vezes tive conversas frustrantes e desinteressantes que pareciam iguais às de qualquer outra aplicativo, seguindo um roteiro grosseiro e mal educado. Aliás, esse tipo de interação é a que tem se tornando cada vez mais frequente. Subguloso01 diz: E ai afim de meter. Não, não estou. 

Como usuário, tenho vivido e pensado um pouco sobre minhas frustrações. Mais que isso, tenho pensando no que pode acontecer com esse encontro entre diferentes concepções e experiências sobre a sexualidade fora do mundo baunilha. Não é muito difícil, ao navegar pelo aplicativo, que se encontre declarações vagas do tipo "sub com pouquíssimos limites", "curto ser dominado por macho com pegada", ou "aberto a experimentar novos fetiches". Se por um lado isso mostra algo vibrante desse grupo de pessoas em termos de uma curiosidade genuína, por outro pode criar desentendimentos. Não foram poucas às vezes que pessoas com esse tipo de perfil já antecipavam uma lista de coisas que queriam que eu fizesse com elas. Ou ainda, que ao propor alguma atividade ou cena específica, se recusassem por sair fora do seu script. Cabe perguntar então: Não ter  limites é algo positivo ou é só uma delegação da responsabilidade? O que caralhos uma pessoa quer dizer quando pensa em "fetiche"? 

Uma coisa que caracteriza o BDSM e o distingue de outros universos são os protocolos. Hoje em dia talvez seja um pouco fora de moda, e com isso ganhamos muitas coisas interessantes. Mas o fato é que em certos contextos, a gente adora estabelecer formas de relacionamento e tratamento que são bastante particulares, principalmente quando se trata de uma relação entre Dominadores e submissos, ou entre mestres e as pessoas que Lhes prestam reverência. Isso passa pela gramática (essa regra já clássica das iniciais maiúsculas, por exemplo), pelo modo como as conversas são construídas e tudo mais. Evidentemente, seguir esse protocolo é um processo em construção. Dominação e submissão se constroem no convívio, ainda que certa cortesia seja sempre bem vinda.

Se por um lado essas experiências frustrantes criam a impressão de que estamos "perdidos na tradução", elas também mostram um reavivamento das possibilidades de viver a sexualidade (mesmo considerando que estamos falando de uma comunidade de homens gays, muitos deles brancos e com um mínimo de capital social ou escolarização). Dito de outro modo, essa sensação de que não estamos todos falando a mesma língua talvez indique que nosso dicionário esteja se expandido. Cabe ajustar os ponteiros e tentar fazer com que essas mudanças não apaguem o passado e a memória das gerações anteriores. 

Um outro aspecto – diríamos até positivo – dessas frustrações e as mudanças que elas sinalizam é que as rachaduras que elas criam pode ser uma forma de desmontar alguns estereótipos. Se por um lado esses desentendimentos partem de imagens problemáticas construídas na cultura e na sociedade sobre o que é a cena BDSM e as pessoas que integram a comunidade, por outro podemos ver também nisso a possibilidade de agregar alguma complexidade às pessoas que fazem parte da cena. Convivendo com puppies, Dominadores, submissos, Mestres, brats, amigas Dominatrix, riggers e bunnies é possível ver um universo de histórias diferentes. Por trás da máscara, das cordas, da jaqueta de couro e do chicote existem histórias e sensibilidades muito variadas. Um dominador que gosta de poesia, um submisso atleta e hiper competitivo, pessoas com talentos variados e histórias de vida igualmente. 

Se essas frustrações que vem sendo alimentadas podem servir a algo bom, que seja para entendermos que como uma cena e uma comunidade, somos pessoas muito diversas. Apesar das nossas manias excêntricas, existem pessoas reais lidando com problemas reais. O Nietsche, um filósofo austríaco que influenciou muitas gerações de pensadores modernos, dizia que "tudo que é profundo ama a máscara", esse parece ser um caso bastante adequado para inserir essa ideia. Que saibamos usar nossas máscaras de forma mais eficiente – e não custa nada exercitar um pouco de bons modos ao se dirigir a alguém superior.

Até a próxima!

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O que faz um dominador?

O que faz de alguém um dominador é uma pergunta que nunca sai da minha cabeça. Isso porque se dominação é um eixo organizador do BDSM, não existe exatamente uma instância de controle que certifique alguém como "dominador de fato". A não certificação em certa medida é nossa salvação, afinal, poderíamos dizer que existem tantos tipos de dominador quanto pessoas que se chamam dessa forma. Em todo caso, não dá pra abrir mão de pensar os efeitos que isso tem sobre situações concretas. Pensemos com situações.

Tank e Dylan Hafertepen são nomes conhecidos no cenário BDSM internacional. Caso você não os conheça, quiça uma busca rápida ao google te leve direto às notícias sobre a morte de Tank. Dylan se tornou famoso pelos inúmeros procedimentos cirúrgicos e pela utilização de esteróides de modo a adequar o seu corpo a proporções mais volumosas. Seu pretensão era de uma silueta ursina musculosa notabilizada pelas coxas e braços volumosos e o tronco reto. Dylan tinha uma espécie de harém com subs que também adotavam a mesma estética e, provavelmente, com práticas similares. No final de 2018, a relação de Tank e Dylan ganhou as páginas dos notíciários em razão do falecimendo de Tank após injetar silicone nos testículos, prática adotada por Dylan e outros do grupo. Segundo noticiado em diversos canais, além de rumores e comentários, as injeções de silicone eram recomendações de Dylan que além disso mantia outras práticas consideradas persecutórias e abusivas com seus subs.O BuzzFeed escreveu uma reportagem relatando de forma mais detalhada o ocorrido, e caso queira lê-la, basta vir aqui.

Uma segunda cena, dessa vez mais curta, é um debate que acompanhei no FetLife. Para aqueles que não conhecem, o FetLife é uma rede social fetichista que concilia ferramentas como grupos de discussão baseado no compartilhamento de interesses, além de perfis pessoais de pessoas de vários lugares do mundo que tem interesse em práticas fetichistas e BDSM. Em muitos aspectos é semelhante ao Orkut ou ao Facebook, com a vantagem de não ter parentes, de você poder criar redes de vinculação mais flexíveis (rope families, clans, ter múltiplos parceiros por exemplo) além de permitir possibilidades de autoidentificação em termos de gênero, orientação sexual e interesses. A maior parte das informações circula em inglês e aqui no Brasil ainda há poucos usuários. De todo modo é um espaço interessante pra se pensar e ver como outras pessoas discutem aspectos interesantes de suas experiências, além de registrá-las. Em um desses debates que me chegou de modo quase aleatório, uma moça submissa escrevia sobre a noção de 'masculinidade tóxica' (se você não sabe de que se trata, clique aqui). Com base em um critério linguístico ela argmentava que esse conceito era falso e não podia ser aplicado porque no fim não se poderia ou deveria adjetivar pessoas com formas de classificação desse gênero, usualmente atribuídas a coisas. Os comentários se replicavam chegando a quase uma centena. Muito deles aplaudiam e concordavam, pessoas com diversas formas de identificação, fossem mais propensas a uma postura mais ativa, fossem propensas a algo mais passivo. Poucos se opunham ao comentário.

Por fim, uma terceira situação ocorreu ainda essa semana, dessa vez pelo Instagram. Em uma de suas sessões de perguntas e respostas o Marcus respondia a pergunta de uma pessoa perguntando se haviam homens dominadores passivos no Brasil. A resposta muito cortês e educada foi de que sim, bastava procurar e ser um pouco paciente, já que não seria a combinação mais comum de encontrar. 

O que essas três situações tem em comum? Em que medida elas podem ajudar a responder a pergunta lá no começo? Bem... de modo imediato poderíamos dizer que elas falam sobre as ideias que temos sobre o que signifique ser dominador, mas em última instância elas também dizem muito sobre o que entendemos como um homem deva se comportar. 

Petraios & Sepher | Junho/2018

Em alguns momentos devo ter repetido aqui que o modo como entendo BDSM é como uma espécie de erotização do poder. Em miúdos isso significa que quando algo que chamamos de BDSM nos excita, parte disso é pela suposição de ordem e controle, de que alguém está a cargo da situação ou sendo coagida por ela. É isso que em alguma medida faz com que pensemos que um submisso que se excita em ser desumanizado e um dominador que se coloca como o homem mais poderoso no fim das contas estejam falando sobre a mesma coisa. Mas isso é também o que faz com que figuras como dominatrix sejam tão fascinantes, afinal, quando se trata de subversão, algo só é excitável quando entende-se que a ordem do mundo concreto é de outro tipo, daí mulheres trantando homems como coisas ser algo excitável só faz sentido quando se supõe que a ordem social no mundo exterior opera de modo contrário. Um dominador ou uma dominatrix, nesse quadro geral é alguém que representa a condensação máxima de controle. E é esse o ponto que nos interessa aqui. Quais as responsabilidades que assumir o controle de algo sugere?

Com a popularização do BDSM nos últimos tempos tem ocorrido a sensação de que o número de dominadores - e talvez também de submissos e submissas  tem aumentado. Se isso é verdade ou apenas efeito da possibilidade de encontrar essas pessoas, é algo a se discutir. O fato é que mais gente se reconhecendo dessa forma significa mais gente disposta a tentar formas de sexualidade não tão habituais da nossa tacanha educação sexual e de gênero, mas também significa que eventualmente estejamos chamando de dominação um certo conjunto de comportamentos que são apenas violentos e grosseiros. Quem lê as postagens aqui já deve ter entendido minha posição a esse respeito. Caso não, é bom voltar algumas postagens e acompanhar, mas em resumo, se trata de buscar o que diferencia práticas sexuais extremas e violentas de práticas com posições hierarquizadas e de erotização da força e controle. Falo isso com a intuição quase convicta de que certas pessoas que se pensam como dominadores talvez sejam apenas escrotas e sem noção, e poderíamos dizer o mesmo para submissos, talvez.

Desautorizar alguém na sua possibilidade de autorreconhecimento como dominador ou submisso não significa rejeitar que o que ela esteja fazendo ao exercer sua sexualidade seja inadequado. Com isso quero dizer que qualquer prática deve prezervar a possibilidade de diálogo e construção conjunta entre dominador e submisso. Os acordos são a principal riqueza e segurança de uma prática, de modo que se é de consensual entre as partes a adoção de uma conduta específica não há muito o que objetar. Apenas tome as providências para que isso seja realizado da forma mais segura e sã possível. Mas nem sempre isso parece acontecer. E é aí que devemos estar alertas. Uma das coisas que faz com que eu me sinta seguro e tranquilo em relação ao BDSM é a convicção de que uma negativa sempre vai funcionar. Quando eu digo ou um sub ligado a mim diz não ter interesse em uma prática, isso significa que naquelas circustâncias e momentos é fora de cogitação que isso possa acontecer entre as pessoas envolvidas. "Acordos" não acordados não prezam por esse princípio e podem machucar e expor as partes a situações de risco, e mesmo certas situações de risco estabelecidas como consensuais devem ser pensadas em seus limites. Entre sugerir a seus subs uma certa estética corporal e expô-los a situações de vulnerabilidade e perigo há um limite nem sempre claro, de modo que precismos estar atentos e sermos responsáveis.

Soa um pouco clichê e demasiado "desconstruído", mas as ideias de consensualidade e segurança são bases fundamentais, clássicas e atuais para qualquer prática BDSM. São elas que garantes o aspecto são de uma experiência. O que faz de alguém dominador talvez deva ser o grau de comprometimento e responsabilidade que ele demonstra ter com aqueles que se submetem e o respeitam, isso porque é sua função principal como criador de uma experiência, mas também porque acreditem ou não, não existe dominador sem submisso. Precisamos posivitar as nossas ideias de hierarquia e entender que mesmo um dominador só é dominador em certas situações e momentos que devem ser estabelecidos entre aqueles que cabem. No fim, se temos tantos dominadores atualmente, esse pânico numérico devesse ceder à ideia de que todo dominador é dominador para um certo alguém, não para todos. 

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Cordas - introdução e modos de usar

No conjunto de práticas que me interessa de forma mais íntima, o bondage é sem dúvidas aquela pela qual tenho maior predileção. De forma geral, bondage reúne una série de práticas e cenas nas quais o interesse é a contenção de alguém, sua imobilização e restrição ao movimento. Ao pensar em bondage é comum que a associação mais imediata seja com as cenas de captura, onde alguém está imobilizado. Em uma cena erótica, a imagem da imobilização é feita usualmente através de cordas.

Existem tantas formas como meios para executar bondage quanto a imaginação permitir. Se lembrarmos que o princípio básico é restringir o movimento, isso pode ser feito com auxílio de cordas, correntes, tecidos (lençóis e bandanas, por exemplo), algemas, além de fitas de alta resistência.

Corda em sisal (Paraíba, 2017)

Bondage, desde minha perspectiva, talvez seja o elemento mais sofisticado do BDSM, não apenas porque demanda um certo aparato de instrumentos para ser realizado, mas também porque para ser significativo e bem realizado requer que se abandone a lógica das sessões eventuais com pessoas aleatórias. Talvez você encontre algum prazer nessa dinâmica, mas nada substitui a possibilidade de se vincular a alguém e construir uma relação de confiança e intimidade que permita a adoção de práticas onde a posição indefesa e as lógicas de cuidado são tão profundas. Eu costumo dizer que amarrar alguém, seja por quais métodos forem, é entregar-se ao controle e aos interesses que nem está com o controle, é expor sua vulnerabilidade e se deixar ser cuidado. Isso requer confiança, intimidade e sensibilidade de ambas as partes, acordos claros e compromisso de cumpri-los.

O objetivo final de uma prática de bondage não costuma ser propriamente a imobilização; ao contrário, se trata de conter e controlar o parceiro a partir da imobilização. Imobilizar alguém é um meio para um fim alternativo, não o fim em si. O fim pode ser um castigo ou recompensa, disciplinamento, suspensão, exaustão física, controle de estímulos, enfim. A criatividade está aí no mundo pra ser explorada.

O propósito desse texto é introduzir alguns aspectos relativos às práticas de bondage e aqui minha atenção inicia recai sobre o elemento mais imediato de qualquer pessoa que pense nisso: as cordas. Vamos falar sobre alguns aspectos técnicos e de composição que dizem respeito a como elas são incorporadas em uma experiência fetichista.


O que é uma corda e como ela é feita?
A pergunta pode parecer boba, mas entender o que é uma corda é importante no contexto de práticas onde se demanda as propriedades que uma corda supõe ter. De maneira mais simples, uma corda é a combinação de fibras vegetais ou sintéticas que são torcidas e trançadas umas às outras. O objetivo da torção é aumentar a resistência da fibra, bem como seu cumprimento já que pequenos pedaços podem compor uma unidade maior.

A depender do tipo de fibra usada, a corda pode ter um tempo de vida maior ou menor. Quando se trata de fibras sintéticas, é mais comum que se utilizem combinações ou porções pura de nylon, poliéster e polipropileno. Já as fibras naturais incluem sisal, cânhamo, juta, algodão, juta e linho. Há também a possibilidade de fazer cordas secundárias, utilizado fibras trançadas para outros fins, como acontece com cordas de seda e cetim, usualmente feitas a com fibras produzidas para ser usadas como tecido e que podem ser trançadas com o aspecto estético e funcional de cordas.

Essas são as cordas que costumo usar com mais frequência. Aqui se vê cordas prontas e trançáveis.
Na sequência: tecido em cetim para trançar cordas, cordas em algodão 8mm, corda de poliamida e sisal.
Conforme o material utilizado para compor a corda, é necessário também a incorporação de outros procedimentos além da própria torção ou trançamento. Esses procedimentos podem ser prévios (como o cozimento da fibra e sua secagem) ou posteriores (quando precisa-se encerar os cordames ou mesmo a corda toda para nivelar a incorporação dos filamentos).

Tipos de corda
É comum que em termos técnicos as cordas sejam chamadas de "cordame", ou cabos. Isso se dá, geralmente, em função do contexto para o qual as cordas são usualmente produzidas em sua maioria: a pesca. Isso cria também as formas de classificação pelo qual elas são organizadas. Essa classificação é feita com base no diâmetro do cordame (usualmente indicada em milímetros) que pode ir de menos de meio centímetro até mais de quatro centímetros. Nesse contexto, são consideradas verdadeiramente cordas aquelas com diâmetro entre 1,3 a 3,8 cm. As menores que isso são chamadas de cordão, e as maiores de amarra.

Além da classificação em virtude do diâmetro, outra forma de classificar as cordas é em virtude das técnicas de torção ou trançado utilizadas na produção. Essa aliás é a primeira forma de divisão: cordas torcidas e cordas trançadas.

As cordas torcidas costumam ser compostas por milhares de filamentos que são ajuntados e retorcidos uns aos outros, criando assim uma maior resistência. A diferenciação entre esses tipos de corda é em virtude da quantidade de "pernas", o que pode ser percebido olhando as pontas.

As cordas trançadas são aquelas feitas através da composição da fibra e seu aglutinamento em um sistema de intercalamento. Aqui as formas de classificação interna são maiores: com ou sem alma (a depender do preenchimento do núcleo interior com algum filamento), com alma e alerta visual (caso de cordas que tem alguma função específica de sinalização, onde o padrão estético é parte das suas características) e cordas para fins especiais (em esportes como vela, escalada, ou em atividades marítimas e de pesca específicas). Caso queira saber mais sobre esse aspecto no caso de cordas para uso naval, confira esse link, aí estão ilustrados os principais tipos de corda e as diferenças entre elas.


Como escolher e encontrar cordas
Atualmente a maior parte das cordas que consumimos é feita para fins de pesca ou para compor mecanismos e equipamentos de construção, como roldanas e elevadores mecânicos simplificados. Isso, em alguma medida, nos ajuda a entender quais os limites uma determinada corda pode ter e sua adequação ou não para um uso entre pessoas humanas. Suponha que você vá a uma casa de construção em busca de uma corda. Para esse fim é comum que se adotem materiais sintéticos, que além de baratear o processo de construção da corda, também viabiliza resistência às altas cargas e necessidade de tração que esses contextos demandam. Contudo, quando se trata de uma artesania como o bondage, essas cordas sintéticas podem machucar, criar ferimentos e incômodo no corpo da pessoa amarrada.

Para práticas de bondage, é mais comum adotar cordas de juta, sisal, cânhamo e algodão. As de algodão são sem dúvidas as mais fáceis de achar, eventualmente as mais baratas além de possibilitar uma maior variedade em termos de coloração, criando efeitos estéticos interessantes. Na relação entre custo e benefício, elas tem uma durabilidade razoável, são fáceis de encontrar, resistentes e leves. As de juta, contudo, são as melhores cordas por agregarem um conjunto de qualidades superior, entre elas a resistência e conforto, mesmo que não sejam as mais baratas.

Os principais aspectos a se considerar ao escolher uma corda são o material e o diâmetro. Ambos quando combinados garantirão a segurança da prática. Nesse aspecto, esteja atento a de que forma você pretende usar e que tipo de corda é mais indicada. Quando se trata de fibra, as naturais são sempre mais indicadas. Aquelas confeccionadas com juta, algodão e seda são as mais usadas no contexto das práticas de bondage pois além dos efeitos estéticos, tem maior durabilidade e resistência. Considere que quanto maior a necessidade de resistência, maior terá de ser o diâmetro da corda, sendo assim, se é possível usar cordas com diâmetro restrito em práticas de imobilização simples, uma experiência de suspensão demandará diâmetros maiores e materiais mais resistentes.

Considere também o tempo de duração da exposição à corda. A torção e a marca da corda na pele ainda que seja excitantes podem incomodar após certo período a depender do material e do próprio nível de conforto da pessoa amarrada.

Uma última nota. Pode parecer incrível, mas as cordas não foram confeccionadas para nós. Os nós são a principal característica do uso fetichista em técnicas como kibanku oki, mas a depender da fibra no qual eles são feitos, ele reduz a resistência da corda em até 40%, de modo que é preciso estar atento ao equilíbrio entre material, uso, resistência e contexto.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Castidade masculina para iniciantes

as viagens se fazem para dentro
Henry Miller

Já há algum tempo tenho estado demasiado ocupado a ponto de não conseguir dar conta de finalizar alguns textos rabiscados aqui, tampouco de retomar os relatos dos últimos acontecimentos e encontros que tenho tido. Em breve estarei de volta com isso, mas até lá deixo vocês com esse texto sobre formas de se introduzir no universo da castidade para homens. 

Old Rusty Lock, de Stephanie Sodel
(aquarela sobre papel algodão, 2013)
A ideia de castidade me era um tanto estranha até pouco tempo. Era estranha porque, ainda que eu fosse muito bem resolvido em relação à expressão não compulsória de certos costumes que incorporamos como sentidos de "sexo" (ejaculação e penetração, por exemplo), a ideia de ter o controle sobre a possibilidade de excitação/ereção não me estimulava tanto. Contudo, as coisas mudam e na vida cada encontro provoca em nós a possibilidade de se repensar e aprender coisas novas. Foi através de um sub, o #52, que eu comecei a pensar nessa possibilidade. Certo dia, durante um encontro e após termos conversado algumas vezes sobre a questão, ele me apareceu com um dispositivo de castidade reluzente, todo em prata. Já o vestia, e em um colar que envolvia seu pescoço estava o pequeno molho com três minúsculas chaves. Nossa relação já se estendia por alguns meses e nos sentimos confortáveis para transformar nossas leituras e conversas em uma experiência de disciplinamento de minha parte, e submissão por parte dele. Desde então tenho tentado me aprofundar na compreensão de, na posição de dominador e mestre, construir formas de cumplicidade onde a castidade dos meus subs e adoradores seja possível. 

Esse texto é uma introdução a esse debate sobre castidade, submissão, contratos e cumplicidade entre dominadores e seus servos. Ele foi publicado em uma revista eletrônica de uma rede social voltada à BDSM e ao mundo do fetiche, e para lê-lo na sua versão em inglês basta clicar aqui. Optei por fazer alguns cortes de modo a adaptar a leitura para um contexto diferente daquele e também para torná-la mais fluída. Em breve retomo a questão com alguns apontamentos pessoais baseado em minhas experiências para avançarmos mais um pouco.

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Castidade masculina: um guia para iniciantes

Qual é o ato mais extremo de dominação e controle? alguns podem vir a dizer que seja a castidade. Muitos homens submissos curtem estar enjaulados, presos (locked up) em um dispositivo de castidade masculino, ter o orgasmo controlado por seu mestre ou mestra. 

Por onde começar?
Antes de estar preso à ideia de castidade masculina, você precisa estar preparados para alguns aspectos importantes. 

1. Converse com seu dominador/key holder( portador da chave):  Vocês precisam concordar em como as coisas funcionarão. Você poderá ter uma chave também ou apenas seu mestra/sua mestra terá acesso a elas? O que fazer em situações de compromissos de trabalho ou ocasiões familiares?

2. Escolha seu dispositivo
Há muitos estilos diferentes de dispositivos de castidade (cinto, ou "gaiola", como chamada por alguns em  português). Vocês precisarão escolher um que funcione melhor pra vocês. Procure algum que se ajuste a você confortavelmente, especialmente se você vai usá-lo por longos períodos. Você também precisa pensar sobre os aspectos práticos, como ir ao banheiro. Você conseguirá mijar usando a gaiola? A distância é grande o suficiente pra não te criar algum impedimento ou confusão? Você vai querer um com inserção uretral pra tornar mais fácil, ou com qualquer outra brincadeira que agregue camadas à relação de castidade?

3. Avalie os riscos
Não soa nada sexy, mas é essencial ter a melhor experiência de puto - especialmente quando se trata de jogos desse tipo. Pense em como as coisas podem dar errado e se prepare pra isso. Isso é imprescindível se o seu mestre ou key holder não vai estar perto de você todo o tempo. O que você pode fazer em casos de emergência? Você poderá ter uma chave caso precise tirar seu dispositivo de castidade rapidamente? Haverá algum tipo de acordo que permita com que você o retire quando requerido ou se você decidir que já foi o bastante? Talvez você possa ter uma chave reserva em algum lugar para situações emergenciais... quem sabe com um amigo que entenda a dinâmica, em uma caixa fechada com segredo, ou em um lugar, na sua casa mesmo, onde o acesso não seja tão fácil.


Entrando na gaiola, vestindo o cinto (de castidade)
Agora que está preparado, é hora de entrar na gaiola, de usar seu dispositivo de castidade. É melhor tentar começar usando seu dispositivo por curtos períodos de tempo, para ver como você se sente com ele. Use durante uma sessão para experimentar a restrição a um orgasmo, a provocação pela tortura e se acostumar a essas sensações e sentimentos. Daí você poderá fazer ajustes, se necessário.

Quando se acostumar a usar o dispositivo de castidade após alguns sessões, você pode seguir e usá-lo por um período maior de tempo. Verifique se seu dispositivo (e seu pau) está limpo quando estiver sob castidade. É especialmente importante que você limpe o dispositivo após mijar - talvez você não queira mijo alio, permanecendo na peça (a não ser que...). Caso sinta algum beliscão, dormência ou mudança na coloração do seu pênis ou testículo, você deve tirá-lo imediatamente, caso contrário está colocando-se seriamente em risco. E lembre-se da sua palavra de segurança (safeword) e use se necessário. Seu keyholder deve ter uma palavra de segurança também, assim ele pode acabar com a brincadeira caso queira. Ter consentimento de todas as partes envolvidas é essencial!

Castidade masculina não é fantasia
A sua fantasia de castidade pode ser o que tenha te levado a submeter-se a uma experiência desse tipo, mas tenha em mente expectativas realistas sobre o que pode vir a acontecer. Pode não ser exatamente como você espera, mas ainda assim pode ser uma coisa boa. Lembre-se de manter a comunicação com seu mestre key holder e não espere que apenas que ele siga sua fantasia até as últimas consequências. O portador é parte da cena também , e assim suas vontades e desejos também são importantes.  As melhores experiências de castidade e controle de orgasmo virão quando as pessoas envolvidas tiverem decidido o que vai acontecer e comunicado sobre suas expectativas e desejos.

O orgasmo controla a diversão
Quando o/a dominador/a tiver você engaiolado, ele/ela estará no controle do seu prazer. Há muitas formas de jogar que podem levar ao êxtase ou não. Isso depende do que o portador da chave decidir.  Talvez você tenha que agradar seu mestre com sua boca ou dedos, mas sem alívio pra si mesmo! Do contrário, ele ou ela poderá te fazer cócegas ou provocar a sentir uma ereção, forçando o dispositivo e seu pau um contra o outro, já que ali ele vai estar impossibilidade de crescer e sem chances de gozar.

E, é claro, você pode ser ordenado a provocar a si mesmo, assistindo um filme pornô ou lendo contos eróticos, mas sem permissão para gozar. Há muitas formas de jogar, tudo requer um pouco de imaginação - e maldade - do seu key holder.


terça-feira, 20 de novembro de 2018

Somos o que fazemos?

Em muitas conversas com amigos, slaves, subs e sub-amigos costumo dizer que o mais importante do BDSM é fugir da imagem senso comum que se constrói sobre ele. Isso implica principalmente oferecer ao clichê um espaço que lhe faça sentido, e esse usualmente não é o palco, o centro das atenções. 

É das mídias que vem as referências que temos para entender o que seja BDSM e diferenciá-lo seja de relações baunilha seja de relações hardcore - mesmo que façamos isso para fins puramente didáticos ou exploratórios. Costumamos falar em mídia como um chavão pra nos referirmos à televisão e aos meios de comunicação e informação de forma ampla, mas não se trata apenas disso. Quando falamos em mídia aqui devemos recordar a esteira que coloca numa mesma linhagem os contos e folhetins proibidos do marquês de Sade, os anúncios de revistas eróticas e pornôs dos anos 1970 a 1990, os desenhos do Tom of Finland, a estética pornô dos filmes do Cadinot e outros diretores, ou mesmo as versões mais contemporâneas do cinema comercial onde o sexo compõe parte da narrativa sobre o cotidiano, assim como a violência, o sofrimento e a dor. Ah, e claro, não nos esqueçamos de suas atualizações que nos são mais contemporâneas, como os aplicativos e redes sociais que podem ser acessados por quase todos com informações e repertórios mínimos.

Esse acervo de imagens que compõem nosso arcabouço pra descrever o que seja BDSM e o que fazemos quando dizemos que somos dominadores, submissores, fetichistas ou o que seja nos dá a aparente impressão de que estamos falando da mesma coisa. Mas, talvez não estejamos.

No meu entendimento, essa espécie de filosofia pessoal de quem se pega por muito tempo pensando nos significados implicados nas experiências que desenvolve, BDSM é como a visão panorâmica de uma floresta. Talvez poucos tenham tido a oportunidade de sobrevoar por horas uma floresta no curso de algum destino. Essa é a imagem mais acessível pra mim porque é algo que me atravessa profissionalmente, e sempre que me deparo com essa imagem e as sensações que ela produz, sinto que ela pode ser algo positivo pra pensar a questão do que seja BDSM.

A primeira coisa que temos que ter em mente é que assim como a floresta, o que julgamos ver não existe. Ao ver as árvores justapostas ali num mesmo solo se estendendo por um mundo sem fim, não é uma floresta que estou vendo. É o oposto. Estou atribuindo uma imagem e um nome de floresta a algo que pode ser outra coisa. Trabalhando na Amazônia já alguns anos, uma das primeiras lições que aprendi é que o que os brancos chamam de floresta pode ser a casa ou o jardim de alguém. A floresta doméstica ou o jardim de um povo não são o mesmo que uma floresta, ainda que eu usualmente veja uma floresta quando olhando pra mesma coisa que meus amigos indígenas veem. O mesmo pode ser dito do BDSM. Alguns dos subs com quem converso, usualmente alguns desses se reconhecendo como heterossexuais me perguntam se as ações de um eventual parceiro ou parceira são BDSM. A resposta que tenho é que nem sempre. Pode ser, mas pode ser outra coisa também. 

Assim como a imagem projetada da floresta a partir das inúmeras árvores, o BDSM é desde a minha perspectiva esse amontoado de coisas nem sempre conciliáveis entre si mas que são ajuntadas num mesmo universo por terem algum traço percebido como comum. De certa maneira, ainda sobre a floresta, quando vemos uma árvore usualmente escondemos uma série de outras coisas que estão compondo ela e que ignoramos: outras plantas que usam a árvore como hospedeira ou como parceira simbiótica, os fungos que estão enraizados, a relação entre o sol e as folhas. A sigla em si fala pouco sobre o universo de práticas que o BDSM envolve, assim como olhar uma árvore fala pouco sobre a floresta.

Cena do filme 'O Anticristo', de Las von Trier (2009).

De minha parte, além da glosa simplória de BDSM como o agregado de prática que envolvem Bondage, Dominação/Disciplina, Sadismo e Masoquismo, entendo que cada uma dessas partes é um guarda-chuva ou uma árvore que guarda inúmeras outras. Essas coisas são práticas, jogos, desejos, fantasias e possibilidades que não estão fechadas em si, assim como uma árvore nunca é só uma árvore. 

Se ao vermos uma árvore podemos criar a imagem de floresta, então é preciso ver que cada árvore é sua própria floresta, e assim aprender a tanto separar quando restabelecer a multiplicidade que há em cada coisa. No fim, não se trata de saber se o que vemos é ou não real e certo e legítimo, mas de entender que podemos compreender o mundo sobre tantas formas quantas forem as formas que nos colocamos a disposição de experimentar através da relação com o outro.

É essa minha posição pessoal sobre o BDSM: uma forma de caminhar através do corpo do outro, de aprender sobre si com a companhia de alguém. De entender que limites podem ser redesenhados tanto da pele pra fora quanto da pele pra dentro. De entender que somos "sementes, muito mais do que raízes", como diria a Adelia Prado.