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terça-feira, 23 de abril de 2019

when you mark someone

The idea of marking goes through every BDSM experience. We talk about them directly or indirectly when we focus on our interest in permanent or momentary marks in our experiences. We also talk about it while feeling the texture of ropes on our skin in bondage, or with a paddle or fingers after a spanking session. It is present as subtle marks that the wax leaves behind on body. These are marks that look like a scar falling apart when we take a shower after a session that involved bodywriting, or even in the cold of needles, catheters and other objects that cross, sew and pierce. These marks are a bodily way of talking about another dimension of the marks we left. This dimension is that of the relationships we build with the people who serve us or who we are serving.

In one of the last texts written here, I said that ultimately there are no dominants without their submissives and servants. Whatever aesthetics you think you are performing as dominant one (caretaker, leather, sadist, controller), this position only makes sense in a particular relationship that involves the expectations and possibilities you have with other people. From my point of view, this is because submission per se is subservience as much as domination per se is arrogance. Nobody does it alone.

In my personal experience, the last few days have been marked by events that make me think about this idea of ​​marking someone. It's been times of farewells, of breaking relationships, releasing collars and letting people go elsewhere, accompanying them in the distance. It is the time of making knots that are looser. And this echoed in me as a sort of obligation to think about which marks I give to the people who came to me, and what it eventually means. I'll illustrate this with a little story.


Sepher, 2019


From May to December 2018 I maintained a fixed relationship with a sub. In general, he was described as a cold and distant person. And in fact, in the beginning, gain his confidence was hard! It required patience, conversation and even a lack of interest in making it a goal. In other words, maybe it was a goal, but one goal among many others. We spent some time together, talking, eating, sharing each other's company. This detachment and coldness were described by other dominants with whom he had contact. What these dominants might not have known was how this ice wall was being built in his experience and how it affects other actual experiences.

Being with him was one of the most thought-provoking and constructive experiences of my domineering experience. This is because, in our disinclination to anticipate agreements and contracts, we had time to build a relationship that really made sense within the universe we inhabited. Things were happening in their time, they had the duration and the intensity that, looking from now on, seems to me to be the ones that I demanded to have.

After the electoral period, he decided to return to his home city and live back with his family. I was fortunate to be one of your last visitors here, almost by accident. In January we said goodbye and he went another way.

In telling this I do not want to pretend to be superior to these others dominants. Rather, I wanna illustrate how hurry makes us distance from people we care about. By giving time to know someone else's story, we not only allow ourselves to know this particular person but also create a more fertile environment for our desires and fetishes. It is about intimacy, and each relation requires a certain quality of time to be truly meaningful.

It is not always the heavy hand or tight knot that hurts, or as my mother used to say, indifference is the queen of barbarism. There are many reasons why someone comes into the world of BDSM and explores the limits of desire and body through strength and pain. As regular people, there are in many of us that lived painful experiences. And these experiences activate many layers of meaning when you must remember. These are layers of fear, of passion. Some of us are prepared to remember, and others may no, so we need to construct a way to pass through these memories. I am convinced that the interest in strength for the majority of people I have known is more the possibility of recognizing oneself in an environment where the boundaries are clear than in a toxic and harmful logic of transforming suffering into excitation. However, this has an effect that needs to be better equalized in our relationships. 

Being with someone, for whatever moments, is being responsible for a relationship. When we cross that boundary of the other's world, we also become part of this world. In this common world, the boundaries may even be clear in terms of limits established about strength and violence, freedom and servitude. But pain and pleasure, humiliation and glory, marks and scars continually overlap this idea of controlled limits. We invariably leave marks on the bodies of others just as others leave their own on ours. Anyway, even using force, one must have some delicacy when it comes to walking among the pains of others.

Anyway, that's it. Nobody does it alone.

As marcas que deixamos

A ideia das marcas atravessa toda experiência de BDSM. Falamos sobre elas direta ou indiretamente quando nos posicionamos sobre nosso interesse em marcas permanentes ou momentâneas, em nossas experiências quando sentimos a textura da corda marcada na pele, de uma palmatória ou dos dedos após uma sessão de spanking, das marcas sutis que a cera deixa no corpo. São as marcas que ficam como uma cicatriz que se desfaz quando tomamos banho após uma sessão ou cena que envolve bodywriting, ou mesmo no frio das agulhas, dos catéteres e outros objetos que atravessam, costuram e perfuram. Pensar nessas marcas é uma forma mais ou menos corporal de falar sobre outra dimensão das marcas. Essa dimensão é a das relações que construímos com as pessoas que nos servem ou aquem servimos.

Em um dos últimos textos escritos aqui, há pouco mais de um mês, eu falava que em última instância não existem dominadores sem seus submissos e servos. Seja qual for a estética que você pense para si enquanto dominador (cuidador, couro, sádico, controlador, enfim), essa posição só faz sentido em uma determinada relação que envolve as expectativas e as possibilidades que se tem junto a outras pessoas. Isso porque, do meu ponto de vista, submissão per si é subserviência tanto quanto dominação per si é arrogância. Ninguém se faz sozinho.

Os últimos tempos  pra mim tem sido marcados por uma série de eventos que me fazem pensar nessa ideia de marcas. Tem sido tempos de despedidas, de desfazer relações e deixar que as pessoas sigam para outros rumos, acompanhá-las ao longe e liberar coleiras, fazer nós que sejam mais frouxos. Isso tem ecoado em mim como uma espécie de obrigação de pensar sobre quais marcas deixo nas pessoas que chegaram a mim e o que isso eventualmente signifique. Vou ilustrar isso com uma pequena história.

Sepher, 2019 

Entre maio e dezembro de 2018 mantive uma relação fixa com um sub. Em geral ele tendia a ser descrito como frio, distante. E de fato, no início conquistar a confiança dele foi um exercício penoso, que exigiu paciência, conversa e até um certo desinteresse em fazer com que isso se tornasse uma meta. Melhor dizendo, talvez fosse uma meta, mas uma entre tantas. Passávamos algum tempo juntos, conversando, comendo, partilhando a companhia um do outro. Esse distanciamento e frieza era descrito por outros doms com os quais ele teve contato. O que esses doms talvez não soubessem, o tivessem pouco interesse em saber era como essa parede foi se construindo, quiçá apressados que estavam com qualquer outra coisa.

Estar com ele foi uma das experiências mais instigantes e construtivas da minha experiência como dominador. Isso porque na nossa displicência de antecipar os acordos e contratos, tivemos tempo de construir uma relação que realmente fez sentido dentro do universo em que habitávamos. As coisas iam acontecendo no seu tempo, tinham a duração e a intensidade que, olhando de agora, me parece que foram as que demandava ter.

Após o período eleitoral ele resolveu voltar para sua cidade de origem. Tive a sorte de, quase por acaso, ser uma das suas últimas visitas ainda aqui. Em janeiro nos despedimos e ele seguiu um outro caminho. 

Ao contar isso não quero ter a pretensão de me colocar como superior a esses outros, mas antes de falar sobre como a pressa às vezes nos afasta das pessoas. Ao dar tempo pra conhecer a história de alguém não apenas nos permitimos conhecer alguém, como também se cria um ambiente mais seguro e fértil para que nossos desejos e fetiches tomem forma. 

Nem sempre é a mão pesada ou o nó apertado que machuca, ou como dizia minha mãe, a indiferença é a rainha da barbárie. Há muitas razões pelas quais alguém chega ao mundo do BDSM e explora os limites do desejo e do corpo através da força e da dor. Há em muitos de nós, na condição de pessoas, o contato com experiências doloridas, com memórias que ativam muitas camadas de significado, de medo, de paixão. Tenho a convicção de que o interesse na força para a maioria das pessoas que conheci é mais a possibilidade de se reconhecer em um ambiente onde os limites são claros do que em uma lógica meio tóxica e danosa de transformar sofrimento em tesão. Contudo, isso tem um efeito que precisa ser melhor equalizado em nossas relações. Estar com alguém, por momentos que seja, é ser reponsável por uma relação. Ao atravessarmos esse limite do mundo do outro, nos tornamos também parte desse mundo onde os limites podem até ser claros, mas dor e prazer, humilhação e glória, marcas e cicatrizes se sobrepõem continuamente. Invariavelmente deixamos marcas nos corpos dos outros, assim como os outros deixam as suas próprias nos nossos. Enfim, mesmo usando da força, há que se ter alguma delicadeza quando se trata de caminhar entre as dores dos outros.

Enfim, é isso. Ninguém se faz sozinho.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Servidão marcada na pele

No universo das possibilidades de experimentar o BDSM existem coisas que atravessam mundos. O bondage, por exemplo. Nos dois  últimos textos penso ter delineado um pouco sobre como esse processo se dá. A ilustração do caso do shibari (uma expressão ou técnica específica para bondage) é clara nesse sentido: esteve presente na história das tecnologias de punião do Japão desde o séxulo XVII, no imaginário pornográfico que atravessou o Pacífico após a Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, também em formas de expressão artística que apesar de flertarem com o erotismo, não necessariamente constituiem formas de experiência erótica. Das técnicas de cultivo e construção naval para as masmorras, o bondage foi se adaptando às pessoas que vieram na possibilidade de imobilização algo excitante, e com isso também foi transformando-se. Mas não é sobre shibari ou qualquer outra forma de bondage que esse texto trata. É sobre bodywriting.

Bodywriting in #78


Bodywriting, como o nome indica, diz respeito ao uso corporal da escrita, ou mais especificamente, a escrever no corpo de alguém. Talvez não seja o fetiche ou interesse mais profícuo na cena BDSM, em especial a brasileira, mas reserva algumas ideias interessantes. Como sempre, vamos começar com uma história.

O livro de cabeceira é um filme de Peter Greenaway. Esse filme foi especialmente importante pra mim como pessoa apaixonada pelo mundo do cinema e também pela escrita. Desde pequeno tenho memórias de mim mesmo envolvido com esses dois universos, e O Livro de Cabeceira é uma síntese orgiástica desses dois mundos. No filme, Greenaway conta a história de Nagiko, uma moça criada pelo pai e sua irmã em uma família tradicional japonesa. O mote do filme é fundamentalmente pensar o corpo como um livro, um lugar onde as histórias são escritas e inscritas, ou seja, como um espaço onde as coisas são registradas, mas também como um espaço a partir do qual as coisas podem tomar forma. Nesse sentido, a cada ano no dia do aniversário de Nagiko o pai escreve uma bênção em suas costas e nuca enquanto a tia recita um manuscrito.

Para aqueles afeitos à cultura japonesa, não é surpresa o quanto a caligrafia ocupa um lugar especial na expressão cultural desse povo, sendo considerada coletivamente como uma arte, inclusive. Mais que isso, escrever no corpo de alguém revela algumas ideias interessantes para a forma como eu entendo o BDSM.

No contexto das práticas de BDSM, ainda que  pouco utilizada como uma prática por si, bodywirting tem sido usada como parte de jogos de humilhação, de cornear alguém e seu sentido é deduzido mais como efeito desses momentos do que com uma experiência em si. Isso é válido, e mostra um pouco da versatilidade que se pode construir em uma relação de dominação quando alguém tem uma caneta e o controle sobre alguém. Mas há mais.

Aos 16 anos tive minha primeira experiência com algo que poderíamos chamar de BDSM, contudo foi há cerca de 8 anos que eu me vi de fato consciente e explicitamente comprometido com o que isso implica. Esse tempo em mim foi marcado por uma série de mudanças complexas, mas que fazem de mim quem eu sou hoje. Sair de casa, trabalhar, cuidar do cotidiano, cuidar de si. O BDSM foi uma porta de acesso para que eu entendesse e conseguisse encontrar um lugar possível pro que me animava como pessoa. Fundamentalmete foi minha forma de entender quem eu sou como pessoa, incluindo o que há de bonito e o que me assusta, o que eu gosto em mim e aquilo com o que eu tenho de aprender a conviver.

Assim, entendo que BDSM é uma forma de se relacionar com o próprio corpo com a ajuda do outro. Uma relação entre mestre e servo, ou entre dom e sub é substancialmente uma forma de aprender sobre os próprios limites em parceria, reconhecendo e continuamente explorando nossos sentidos de dor e de glória. Nesse processo alguns gestos em especial ganham especial significado pra cada pessoa. O momento em que a corda aperta e encontra o limite da pele para um bunnyboy deve ser tão excitante quanto é o primeiro contato de uma cinta ou da própria palma da mão para um mestre sádico. Essas são formas supremas e quase consensuais desses pequenos momentos de glória que atravessa cada um de nós quando vemos o pelo arrepiar e o olho sutilmente ir fechando-se, levando todo o corpo para um outro plano de experiência. E é isso que eu sinto quando tenho uma caneta em mãos e atravesso o corpo de alguém com ela.

autorretrato corpolivro | novembro/2018


Escrever é minha forma particular de compartilhar minha intimidade com o mundo. O bodywriting pra mim é como uma sobremesa que no fim do jantar dignifica uma refeição completa e tudo que ela significa. É o momento de intimidade onde um dom e seus subs, ou um mestre e seus servos compartilham um segredo que se estende na duração do tempo da tinta, na tentativa de entender o que está sendo escrito muitas vezes aquém do que se vê no momento.

Os subs e servos que tenho são o que há de mais significativo na minha posição como mestre. São uma espécie de tesouro.  Sempre que escrevo algo no corpo de algum deles tende a ser algo que escapa o planeado, como uma espécie de agradecimento e dignificação de uma relação que faz com que ambos possam ir além. Escrever no corpo de alguém é uma espécie de bondage, no sentido que requer algo como confiança e sensibilidade, não no sentido próprio da segurança ou do controle para que a exposição e a vulneralidade não se tornem risco, mas porque ao escrever em alguém os limites dos corpos ficam por algum momento borrado, e é preciso delicadeza quando se chega ao corpo de alguém.

Assim como o BDSM é uma forma particular de entender e se relacionar com o próprio corpo, cada um pode explorar suas possibilidades através das linguagens e da forma como cada técnica se apresenta na sua própria história. Eu tenho a graça e a sorte de ter uma memória, e a escrita talvez seja o maior instrumento da memória. Agora só me resta escrever. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O que faz um dominador?

O que faz de alguém um dominador é uma pergunta que nunca sai da minha cabeça. Isso porque se dominação é um eixo organizador do BDSM, não existe exatamente uma instância de controle que certifique alguém como "dominador de fato". A não certificação em certa medida é nossa salvação, afinal, poderíamos dizer que existem tantos tipos de dominador quanto pessoas que se chamam dessa forma. Em todo caso, não dá pra abrir mão de pensar os efeitos que isso tem sobre situações concretas. Pensemos com situações.

Tank e Dylan Hafertepen são nomes conhecidos no cenário BDSM internacional. Caso você não os conheça, quiça uma busca rápida ao google te leve direto às notícias sobre a morte de Tank. Dylan se tornou famoso pelos inúmeros procedimentos cirúrgicos e pela utilização de esteróides de modo a adequar o seu corpo a proporções mais volumosas. Seu pretensão era de uma silueta ursina musculosa notabilizada pelas coxas e braços volumosos e o tronco reto. Dylan tinha uma espécie de harém com subs que também adotavam a mesma estética e, provavelmente, com práticas similares. No final de 2018, a relação de Tank e Dylan ganhou as páginas dos notíciários em razão do falecimendo de Tank após injetar silicone nos testículos, prática adotada por Dylan e outros do grupo. Segundo noticiado em diversos canais, além de rumores e comentários, as injeções de silicone eram recomendações de Dylan que além disso mantia outras práticas consideradas persecutórias e abusivas com seus subs.O BuzzFeed escreveu uma reportagem relatando de forma mais detalhada o ocorrido, e caso queira lê-la, basta vir aqui.

Uma segunda cena, dessa vez mais curta, é um debate que acompanhei no FetLife. Para aqueles que não conhecem, o FetLife é uma rede social fetichista que concilia ferramentas como grupos de discussão baseado no compartilhamento de interesses, além de perfis pessoais de pessoas de vários lugares do mundo que tem interesse em práticas fetichistas e BDSM. Em muitos aspectos é semelhante ao Orkut ou ao Facebook, com a vantagem de não ter parentes, de você poder criar redes de vinculação mais flexíveis (rope families, clans, ter múltiplos parceiros por exemplo) além de permitir possibilidades de autoidentificação em termos de gênero, orientação sexual e interesses. A maior parte das informações circula em inglês e aqui no Brasil ainda há poucos usuários. De todo modo é um espaço interessante pra se pensar e ver como outras pessoas discutem aspectos interesantes de suas experiências, além de registrá-las. Em um desses debates que me chegou de modo quase aleatório, uma moça submissa escrevia sobre a noção de 'masculinidade tóxica' (se você não sabe de que se trata, clique aqui). Com base em um critério linguístico ela argmentava que esse conceito era falso e não podia ser aplicado porque no fim não se poderia ou deveria adjetivar pessoas com formas de classificação desse gênero, usualmente atribuídas a coisas. Os comentários se replicavam chegando a quase uma centena. Muito deles aplaudiam e concordavam, pessoas com diversas formas de identificação, fossem mais propensas a uma postura mais ativa, fossem propensas a algo mais passivo. Poucos se opunham ao comentário.

Por fim, uma terceira situação ocorreu ainda essa semana, dessa vez pelo Instagram. Em uma de suas sessões de perguntas e respostas o Marcus respondia a pergunta de uma pessoa perguntando se haviam homens dominadores passivos no Brasil. A resposta muito cortês e educada foi de que sim, bastava procurar e ser um pouco paciente, já que não seria a combinação mais comum de encontrar. 

O que essas três situações tem em comum? Em que medida elas podem ajudar a responder a pergunta lá no começo? Bem... de modo imediato poderíamos dizer que elas falam sobre as ideias que temos sobre o que signifique ser dominador, mas em última instância elas também dizem muito sobre o que entendemos como um homem deva se comportar. 

Petraios & Sepher | Junho/2018

Em alguns momentos devo ter repetido aqui que o modo como entendo BDSM é como uma espécie de erotização do poder. Em miúdos isso significa que quando algo que chamamos de BDSM nos excita, parte disso é pela suposição de ordem e controle, de que alguém está a cargo da situação ou sendo coagida por ela. É isso que em alguma medida faz com que pensemos que um submisso que se excita em ser desumanizado e um dominador que se coloca como o homem mais poderoso no fim das contas estejam falando sobre a mesma coisa. Mas isso é também o que faz com que figuras como dominatrix sejam tão fascinantes, afinal, quando se trata de subversão, algo só é excitável quando entende-se que a ordem do mundo concreto é de outro tipo, daí mulheres trantando homems como coisas ser algo excitável só faz sentido quando se supõe que a ordem social no mundo exterior opera de modo contrário. Um dominador ou uma dominatrix, nesse quadro geral é alguém que representa a condensação máxima de controle. E é esse o ponto que nos interessa aqui. Quais as responsabilidades que assumir o controle de algo sugere?

Com a popularização do BDSM nos últimos tempos tem ocorrido a sensação de que o número de dominadores - e talvez também de submissos e submissas  tem aumentado. Se isso é verdade ou apenas efeito da possibilidade de encontrar essas pessoas, é algo a se discutir. O fato é que mais gente se reconhecendo dessa forma significa mais gente disposta a tentar formas de sexualidade não tão habituais da nossa tacanha educação sexual e de gênero, mas também significa que eventualmente estejamos chamando de dominação um certo conjunto de comportamentos que são apenas violentos e grosseiros. Quem lê as postagens aqui já deve ter entendido minha posição a esse respeito. Caso não, é bom voltar algumas postagens e acompanhar, mas em resumo, se trata de buscar o que diferencia práticas sexuais extremas e violentas de práticas com posições hierarquizadas e de erotização da força e controle. Falo isso com a intuição quase convicta de que certas pessoas que se pensam como dominadores talvez sejam apenas escrotas e sem noção, e poderíamos dizer o mesmo para submissos, talvez.

Desautorizar alguém na sua possibilidade de autorreconhecimento como dominador ou submisso não significa rejeitar que o que ela esteja fazendo ao exercer sua sexualidade seja inadequado. Com isso quero dizer que qualquer prática deve prezervar a possibilidade de diálogo e construção conjunta entre dominador e submisso. Os acordos são a principal riqueza e segurança de uma prática, de modo que se é de consensual entre as partes a adoção de uma conduta específica não há muito o que objetar. Apenas tome as providências para que isso seja realizado da forma mais segura e sã possível. Mas nem sempre isso parece acontecer. E é aí que devemos estar alertas. Uma das coisas que faz com que eu me sinta seguro e tranquilo em relação ao BDSM é a convicção de que uma negativa sempre vai funcionar. Quando eu digo ou um sub ligado a mim diz não ter interesse em uma prática, isso significa que naquelas circustâncias e momentos é fora de cogitação que isso possa acontecer entre as pessoas envolvidas. "Acordos" não acordados não prezam por esse princípio e podem machucar e expor as partes a situações de risco, e mesmo certas situações de risco estabelecidas como consensuais devem ser pensadas em seus limites. Entre sugerir a seus subs uma certa estética corporal e expô-los a situações de vulnerabilidade e perigo há um limite nem sempre claro, de modo que precismos estar atentos e sermos responsáveis.

Soa um pouco clichê e demasiado "desconstruído", mas as ideias de consensualidade e segurança são bases fundamentais, clássicas e atuais para qualquer prática BDSM. São elas que garantes o aspecto são de uma experiência. O que faz de alguém dominador talvez deva ser o grau de comprometimento e responsabilidade que ele demonstra ter com aqueles que se submetem e o respeitam, isso porque é sua função principal como criador de uma experiência, mas também porque acreditem ou não, não existe dominador sem submisso. Precisamos posivitar as nossas ideias de hierarquia e entender que mesmo um dominador só é dominador em certas situações e momentos que devem ser estabelecidos entre aqueles que cabem. No fim, se temos tantos dominadores atualmente, esse pânico numérico devesse ceder à ideia de que todo dominador é dominador para um certo alguém, não para todos. 

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Kinbaku - uma breve história do bondage japonês

Dando continuidade ao debate sobre técnicas de bondage, nesse post apresento uma tradução de um artigo publicado na Vice que sintetiza alguns aspectos da história e elementos do Kinbaku, ou como se costuma falar, o shibari. 

Apesar de eventualmente serem usados como sinônimos, essas duas palavras remetem a concepções diferentes sobre a expressão japonesa do bondage. Kinbaku é a transliteração da palavra japonesa  緊縛, que conforme os dicionários consultados é marcado como substantivo e refere-se a duas coisas: (a) em um sentido estrito, kinbaku é o efeito de algo que é amarrado de forma apertada, forte; e, (b), em um sentido mais amplo, ele se refere ao aspecto emocional de estar amarrado. Já shibari apresenta-se tanto como verbo e como substantivo. É a transliteração de  縛 que significa "amarra" ou "amarrar", agrupar algo a partir de uma ligação, conforme os dicionários.

As distinções entre shibari e kinbaku são importantes de serem apreendidas tendo em vista que, em sua dimensão mais precisa, a noção japonesa da prática tal como experimentada por essas pessoas diz respeito não apenas a um conjunto de procedimentos técnicos, mas de fato à construção de uma atmosfera onde uma certa experiência pode ser possível. O artigo apresenta algumas dessas questões. 

Assim como nas demais traduções, optei por fazer alguns recortes e reformulações quando necessário tendo em vista que o propósito aqui não é exatamente o mesmo daquele publicado pela Vice. Caso queira ler a versão em inglês, clique aqui. Considerando que o universo das sociedade e cultura japonesa podem ser um tanto distante para alguns dos leitores, tanto como possível tentei aproximar as referências, por vezes através de glosas ou adaptações de termos que fazem referência a momentos, contextos, pessoas e estéticas específicas, quanto através de links que podem encaminhar à visualização ou leitura a partir de outras fontes. Agora, divirtam-se!

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Uma breve história do Kinbaku

Alinhamentos rígidos, design complexos e nós que fariam qualquer marinheiro corar estão juntos na arte do Kinbaku, o bondage erótico japonês. A prática está presente em esculturas, performances e danças a dois; mais que isso, atualmente você não pode ser fetichista sem tê-la visto. Artistas e entusiastas tem adotado a prática, trazendo doses dela para o público através de revistas de moda e galerias de arte, por exemplo. Uma busca rápida pela hashtag #kinbaku no Instagram reporta uma rolagem extensa, com mais de 60.000 fotos marcadas.

Para o não iniciado, Kinbaku pode ser visto como a última tendência pop no BDSM, mas a tradição Kinbaku estende-se por séculos antes de chegar aos buracos e lastros mais pervertidos das redes sociais. Os antecedentes históricos incluem as representações na Shunga, a arte erótica japonesa usada como forma de educação sexual para recém-casados, assim como aparece também no Shijuhatte, a versão japonesa do Kama Sutra. A ilustração "O Sonho da esposa do pescador", datado  do início do século XIX e de autoria de Katsushida Hokusai, é uma referência icônica à arte japonesa dos nós em corda. Essa espécie de xilogravura bastante típica do ukiyo-e (traduzido em português como 'pinturas-brocado), uma forma de expressão dos modos de vida urbanos do momento, apresenta o êxtase de uma mulher tomada por um polvo. Os tentáculos do animal simultaneamente estimulam e se entrelaçam ao corpo da mulher, assemelhando-se a uma espécie de corda.

O sonho da esposa do pescador, Katsushika Hokusai, 1814

Assim como as ferramentas ocidentais de subjugação passaram a ser sujeito nas elaboração das fantasias, as cordas tiveram um padrão de expressão semelhante. As correntes usadas para ancorar donzelas em perigo nos contos de fada ocidentais encontram seu correlato na corda que subjuga os prisioneiros no folclore japonês. Em um texto central sobre o assunto, Master K, professor e autor do livro "The Beauty of Kinbaku" explica que shibari, o termo geral para a amarração em corda, teve uma miríade de práticas e funções decorativas ao longo da história do Japão, nas oferendas rituais xintoístas, nas competições de sumô e na tradição do quimono. Sua adoção em um contexto de prática erótica é simplesmente uma outra aplicação das cordas - uma ferramenta inextrincável da própria cultura japonesa. 
Durante a era Edo, a classe samurai dominante usava cordas em combate e para conter prisioneiros de guerra em uma arte marcial chamada 'hojojutso', uma prática brutal que tem alguma proximidade com o kinbaku contemporâneo. Naquele período, entre os séculos XVII e XIX, as leis criminais oficiais do xogunato Tokugawa usavam nós para torturar e exortar a confissão da cativos, assim como exibir supostos criminosos. Na exibição pública, correlacionava-se de forma legível o tipo criminal e a amarração a ser utilizada na administração da pena, de modo que se criar uma advertência clara para a multidão de observadores. 
No começo do século XX, o teatro kinbaku começou a adotar nós em corda em uma forma estética e performática elevada, apresentando os primórdios disso que hoje reconhecemos como kinbaku. A técnica do hojojutso foi reimaginada, assim os atores poderiam recriar os movimentos de forma segura no palco, resenhando-a em uma estética mais encorpada e dando ao público uma experiência visual mais proeminente.
Após a Segunda Guerra Mundial, as revistas fetichistas nos dois lados do Pacífico passaram a apresentar registros provocativos de kinbaku, primeiro em ilustração e depois através de fotos. Revistas populares como Kitan Club e Uramado eram trocadas com os mastros fundadores do underground americano, como a revista Bizarra, começando a polinização cruzada entre duas culturas fetichistas do globo, o que persiste até hoje. 
"Ten tied woman", dez mulheres amarradas, ilustração de Kitan Reiko.
A ilustração compõe uma das edições da revista Kitan Club, datada de 1952

Para um olho não treinado, no fim o Kinbaku não parece tão diferente daquele de suas raízes nas práticas de tortura; contudo, adeptos exaltam as virtudes e prazeres do "sub space" no qual um parceiro submisso acessar um estado meditativo altamente terapêutico - encontrando assim, como mencionado por muitos entusiastas dizem, libertação na restrição. "Quando feito de maneira adequada, kinbaku não é doloroso. É completamente sensual", diz Master K em uma entrevista. Conforme argumenta, a prática estimula zonas erógenas, liberando endorfina e dopamina para o cérebro de modo que, continua, "você pode sair de uma sessão de kinbaku sentindo cada parte sua relaxada assim como se tivesse acabado de sair de uma sessão de hot yoga".

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Sobre o relato erótico

Escrever sobre si é um contínuo exercício de aprendizagem. Os diários e blogs são um exemplo disso. Ao escrevermos damos forma a um repertório, a um conjunto de sensações que falam sobre nossa relação com o mundo, como cada um de nós cria e dá sentido às coisas que vê, cheira, diz, ouve etc. 

Quando penso em contextos de relação marcados pelo que cada pessoa possa vir a chamar de BDSM é particularmente interessante pra mim como duas modalidades de expressão através da escrita se amontoam. A primeira delas é o manual. Os manuais são esses informes sobre como fazer as coisas, sobre a construção de valores e perspectivas razoavelmente partilhados pelas pessoas que se pensam como parte de uma relação BDSM. É nos manuais que vemos sendo articuladas as primeiras definições sobre cada uma das letras que compõem a sigla e os universos de práticas que elas podem compreender, sobre o consentimento, as ideias particulares de hierarquia, cena, jogo, safeword, etc.

Os manuais são importantes porque eles tentam criar um idioma comum para aqueles que atravessam os universos do BDSM. Mas eles não falam sobre os caminhos, sobre as experiências. Daí a curiosidade sobre os relatos. Os relatos são um mundo particularmente curioso da dimensão expressiva do BDSM. Digo isso porque, como sociedades inseridas num projeto de ocidente e de modernidade onde o sexo é colocado como possível apenas em situações de comunicação e de interlocução determinadas, falar sobre os desejos, as vontades e os corpos é particularmente complicado. Agora, pensemos sobre falar sobre desejos e vontades quando a possibilidade de fruição do sofrimento, da dor, da violação podem ser veículos de prazer. Isso é ainda mais complicado.

O aparente sigilo que os diários guardavam há algumas gerações agora são traduzidos pela possibilidade de criarmos perfis que separam nossas vidas cotidianas dos nossos desejos. É como se a intimidade colocasse a necessidade de reorganizar os limites que construímos entre público e privado sem sacrificar a ninguém. Assim, não falemos em perfis fakes nesse caso, mas em perfis outros, os perfis em que as pessoas podem construir corpos para si a partir da fala de algo que em tese não deveria ser publicizado. 


Edição de David Foster Wallace com suas próprias anotações para o livro de peças de Don DeLillo
Minha curiosidade em relação aos relatos todavia não tem a ver com essa dimensão de falar algo que em tese não deveria ser falado em público. O que me chama atenção nos relatos é como as pessoas narram suas próprias experiências. 

Meu propósito não é construir um manual sobre como redigir relatos. Longe de mim querer enquadrar o modo como cada um se sente mais confortável para se expressar. Minha própria linguagem aqui pode parecer truncada ou dura demais para uma página que se pretende a falar sobre "safadeza", "putaria", "cachorragem", enfim, sobre o que seja o desejo pelo corpo do outro em sua forma mais singela e vulnerável.

Quando leio relatos eróticos, sejam eles no universo do BDSM, hardcore ou baunilha, me salta aos olhos como as experiências são traduzidas em listas. Uma sessão, um encontro, enfim, uma parceria entre um dom e seu(s) sub(s) se converte em uma lista de coisas que foram feitas. Quase burocrático, não?

A questão então é, afinal, que importa isso? Talvez não importe nada. Mas eu gostaria de pensar uma outra alternativa, uma possibilidade de descrever o mundo e as relações que construímos nele e a partir dele com outros parâmetros. Sensações me são mais palpáveis que listas. Isso porque listas só fazem sentido em um universo onde as coisas ou foram pensadas ignorando as pessoas ou foram elaboradas a partir do apagamento dos acontecimentos. Isso me parece algo como um empobrecimento da experiência, inclusive do prazer de narrar algo.

"Suor", um dos meus últimos diários pessoais.

Falo isso porque o ato de narrar é particularmente importante pra mim, como profissional, mas também como pessoa. No adestramento dos meus subs tenho por hábito distribuir entre alguns um pequeno caderno, um diário, onde eles possam registrar suas experiências com outras pessoas, comigo e com outros dominadores. A expectativa nisso é que elas possam se colocar a obrigação de pensar sobre si mesmas, de entender como sentem prazer, como a sujeição a alguém a quem se propõem confiar pode ser uma forma de entender a si mesmas e não cair em armadilhas da ingenuidade ou do esquecimento.

Quando narramos algo podemos assumir a posição de testemunhas, de observadores, de confessores, enfim, estamos ali como uma possibilidade de ver e de retransmitir os sentidos de um acontecimento ou experiência. Somos parte máquinas, e as máquinas são esse conjunto complexo de modos de fazer e criar resposta. Mas como pessoas-máquinas, somos também movidos por sensações. E é por meio das sensações que eu gostaria de propor uma alternativa ao relato erótico como listas. Como meu interesse não é um manual de redação e estilo para relatos eróticos, permitam-me que eu termine esse ensaio com uma descrição de uma sessão ocorrida há alguns dias. Isso vocês lerão em breve, aqui.

Somos o que fazemos?

Em muitas conversas com amigos, slaves, subs e sub-amigos costumo dizer que o mais importante do BDSM é fugir da imagem senso comum que se constrói sobre ele. Isso implica principalmente oferecer ao clichê um espaço que lhe faça sentido, e esse usualmente não é o palco, o centro das atenções. 

É das mídias que vem as referências que temos para entender o que seja BDSM e diferenciá-lo seja de relações baunilha seja de relações hardcore - mesmo que façamos isso para fins puramente didáticos ou exploratórios. Costumamos falar em mídia como um chavão pra nos referirmos à televisão e aos meios de comunicação e informação de forma ampla, mas não se trata apenas disso. Quando falamos em mídia aqui devemos recordar a esteira que coloca numa mesma linhagem os contos e folhetins proibidos do marquês de Sade, os anúncios de revistas eróticas e pornôs dos anos 1970 a 1990, os desenhos do Tom of Finland, a estética pornô dos filmes do Cadinot e outros diretores, ou mesmo as versões mais contemporâneas do cinema comercial onde o sexo compõe parte da narrativa sobre o cotidiano, assim como a violência, o sofrimento e a dor. Ah, e claro, não nos esqueçamos de suas atualizações que nos são mais contemporâneas, como os aplicativos e redes sociais que podem ser acessados por quase todos com informações e repertórios mínimos.

Esse acervo de imagens que compõem nosso arcabouço pra descrever o que seja BDSM e o que fazemos quando dizemos que somos dominadores, submissores, fetichistas ou o que seja nos dá a aparente impressão de que estamos falando da mesma coisa. Mas, talvez não estejamos.

No meu entendimento, essa espécie de filosofia pessoal de quem se pega por muito tempo pensando nos significados implicados nas experiências que desenvolve, BDSM é como a visão panorâmica de uma floresta. Talvez poucos tenham tido a oportunidade de sobrevoar por horas uma floresta no curso de algum destino. Essa é a imagem mais acessível pra mim porque é algo que me atravessa profissionalmente, e sempre que me deparo com essa imagem e as sensações que ela produz, sinto que ela pode ser algo positivo pra pensar a questão do que seja BDSM.

A primeira coisa que temos que ter em mente é que assim como a floresta, o que julgamos ver não existe. Ao ver as árvores justapostas ali num mesmo solo se estendendo por um mundo sem fim, não é uma floresta que estou vendo. É o oposto. Estou atribuindo uma imagem e um nome de floresta a algo que pode ser outra coisa. Trabalhando na Amazônia já alguns anos, uma das primeiras lições que aprendi é que o que os brancos chamam de floresta pode ser a casa ou o jardim de alguém. A floresta doméstica ou o jardim de um povo não são o mesmo que uma floresta, ainda que eu usualmente veja uma floresta quando olhando pra mesma coisa que meus amigos indígenas veem. O mesmo pode ser dito do BDSM. Alguns dos subs com quem converso, usualmente alguns desses se reconhecendo como heterossexuais me perguntam se as ações de um eventual parceiro ou parceira são BDSM. A resposta que tenho é que nem sempre. Pode ser, mas pode ser outra coisa também. 

Assim como a imagem projetada da floresta a partir das inúmeras árvores, o BDSM é desde a minha perspectiva esse amontoado de coisas nem sempre conciliáveis entre si mas que são ajuntadas num mesmo universo por terem algum traço percebido como comum. De certa maneira, ainda sobre a floresta, quando vemos uma árvore usualmente escondemos uma série de outras coisas que estão compondo ela e que ignoramos: outras plantas que usam a árvore como hospedeira ou como parceira simbiótica, os fungos que estão enraizados, a relação entre o sol e as folhas. A sigla em si fala pouco sobre o universo de práticas que o BDSM envolve, assim como olhar uma árvore fala pouco sobre a floresta.

Cena do filme 'O Anticristo', de Las von Trier (2009).

De minha parte, além da glosa simplória de BDSM como o agregado de prática que envolvem Bondage, Dominação/Disciplina, Sadismo e Masoquismo, entendo que cada uma dessas partes é um guarda-chuva ou uma árvore que guarda inúmeras outras. Essas coisas são práticas, jogos, desejos, fantasias e possibilidades que não estão fechadas em si, assim como uma árvore nunca é só uma árvore. 

Se ao vermos uma árvore podemos criar a imagem de floresta, então é preciso ver que cada árvore é sua própria floresta, e assim aprender a tanto separar quando restabelecer a multiplicidade que há em cada coisa. No fim, não se trata de saber se o que vemos é ou não real e certo e legítimo, mas de entender que podemos compreender o mundo sobre tantas formas quantas forem as formas que nos colocamos a disposição de experimentar através da relação com o outro.

É essa minha posição pessoal sobre o BDSM: uma forma de caminhar através do corpo do outro, de aprender sobre si com a companhia de alguém. De entender que limites podem ser redesenhados tanto da pele pra fora quanto da pele pra dentro. De entender que somos "sementes, muito mais do que raízes", como diria a Adelia Prado.