quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Relato 002 - As partes tomadas

"Madame Bovary c'est moi"
Gustave Flaubert
[leia enquanto escuta essa música]

A primeira imagem que alguém pode ter de São Paulo provavelmente é de uma cidade gigante, repleta de prédios, cinzenta. Uma Gotham City em paleta de cores levemente mais moderada que as reproduzidas pelo cinema. Isso pode ser verdade, mas também esconde a quantidade de encontros por acaso que se pode ter com pessoas conhecidas - isso pra não mencionar os desconhecidos íntimos, aqueles que vemos todo dia sem saber quem são. Isso provavelmente deve ser porque a cidade é uma imagem na cabeça de cada um, e o que se vive de fato são pequenos pedaços, razoavelmente conhecidos pelo cotidiano exercido neles. Os espaços de lazer e diversão, o trabalho, a vizinhança e a família costumam conectar isso. Acrescentemos a isso a curiosidade de que, ao menos no bairro onde vivo, aqui é, entre as cidades que já conheci, um dos poucos lugares onde em aplicativos de geolocalização não consigo ir muito além de 1 km no volume de 50 perfis mais próximos que minha modalidade de conta permite visualizar. 

Essa nota sociológica contudo não serve de muita coisa em si. Ela está aí em virtude de um pequeno causo ocorrido há pouco. Hoje é quinta-feira em uma semana que até ontem havia sido marcada pelo frio e pela chuva. O sol reinou, fazendo com que tivéssemos de fato a prometida primavera.

Estava saindo para resolver pendências de trabalho por volta das 14h. No meu caminho o metrô é um veículo inadiável. Tomei a condução na estação próxima a onde moro e desci na estação seguinte para fazer a baldeação para outra linha que me levaria até meu destino. Pouco depois de embarcar no segundo trem me dou conta de uma figura conhecida. Pele clara, cabelo levemente gris, as mãos firmes, grandes e macias deslizavam a tela do celular simultaneamente se entretendo e ignorando o movimento exterior. Me aproximei, algo dispensável em razão do pouco volume de pessoas no transporte. Queria provocá-lo. Aproximei-me primeiro pelo lado, eventualmente deslizando a coxa pelo seu braço, e logo depois, em frente. Ele permanecia desconcertado, levemente irritado e ignorando o que se passava, fixo à tela. Não reagia de maneira expressiva. Encostei com um chute leve o seu sapato, o que vez com que os olhos grandes e escuros se erguessem de baixo pra cima me observando. Com o dedo indo em direção aos lábios disse para que ficasse calado e dei um riso, enquanto ele corava e esboçava um riso tímido, em resposta. Era 089B, de quem falei no relato anterior.

Perguntei onde estava indo. Disse que estava voltando para casa após uma manhã de reuniões e que teria coisas para continuar fazendo em sua própria casa. Desceria na estação seguinte para ir a um cartório, e logo em seguida retornaria para casa. Ele trabalha como arquiteto e morávamos relativamente próximos, a cerca de duas ou três estações, algo como que dois quilômetros de distância. Sugeri então que fizesse o que tinha de fazer o mais rápido possível e que o esperaria para que tomássemos um café. Combinado feito, ele seguiu enquanto esperei por cerca de quinze minutos até que aparecesse de volta à estação. Estava suado, aparentemente havia corrido para não me deixar esperando. Seguimos até a estação onde e descemos próximo a um centro cultural na vizinhança de onde eu morava. No caminho, mais uma vez permanecia sentado enquanto eventualmente lhe aplicava uns chutes aleatórios sobre o sapato.

Chegamos ao café. Estava cansado e logo após sentarmos coloquei minha perna sobre a sua, do outro lado da cadeira. Assim como dito por sua esposa, a atitude tímida fazia com que se enrubescesse com demasiada facilidade. Imagino que deve ter no lapso de segundos entre estar sentado e perceber minha perna sobre a sua as probabilidades de ser visto por vizinhos, amigos, conhecidos que faziam parte do seu cotidiano ali na redondeza. Mexia as mãos, baixava a cabeça, ansioso. Tomei sua mão, virei o celular contra a mesa e disse que se acalmasse. Nosso pedido chegou e disse para servir nosso café, como havia feito na semana anterior.

Seria inevitável falarmos do nosso encontro anterior; afinal, pouco havíamos conversado desde então. Continuava mantendo comunicação frequente com sua esposa. Perguntei como estava, o que sentiu, se algo o havia perturbado na nosso repentino combinado. Me encantava como suas respostas eram um avanço, a cada informação nova agregava um elemento a mais daquilo que lhe ensinávamos. Em menos de cinco minutos já usava o 'senhor' nas respostas com destreza e proficiência. Também estava mais tranquilo, aparentemente mais excitado e confortável na sua própria pele e posição.

089A era jornalista e havia conhecido o marido durante a universidade, já que estudavam em lugares próximos e tinham amigos em comum. Casaram-se cerca de 3 anos depois de iniciado e namoro e estavam juntos há 9 anos mais. Disse ter curiosidade ao longo dos anos, que sempre tivera uma fascinação por pessoas que lhe estimulavam respeito e obediência. Era o caso da esposa, em muitos aspectos mais deliberativa e cheia de iniciativa. Contudo, dizia também ter curiosidade no contato com homens, o que foi sempre deixado para posteriori, apesar do desembaraço com que conversava com a companheira de anos.

Nosso encontro dias antes, dizia ele, foi um muitos sentidos, dois em especial. O lugar de submissão nos encontros com sua esposa ou outras pessoas, e o encontro com outro homem. Ele estava ali, de surpresa, a serviço de duas figuras que deveria obediência e reconhecia. Dei uma leve tapinha em seu rosto quando falou isso. Um riso tímido, bonito pelo seu aspecto genuíno se fazia no canto da boca. O café havia chegado a seu fim e haveria de devolvê-lo à sua casa.

Fui assaltado pela recorrente ideia de tomar recompensas ou troféus pelas pequenas realizações do dia. Rapidamente vasculhei em minha mochila um envelope. Pedi que levantasse e baixasse um pouco a calça para que visse a cueca. Entreguei o envelope e ordenei então que fosse ao banheiro, tirasse a cueca, depositasse dentro do envelope e a trouxesse até mim. Fez um breve gesto de excitação ou resposta até que, mais uma vez, respondi que ficasse calado levando o dedo aos lábios. Dei um tapa em sua bunda e indiquei o caminho do banheiro.

Enquanto seguia enviei uma mensagem para sua esposa, 089A, dizendo que caso estivesse em casa estaria enviando um presente para ela. Perguntou o que era. Não respondi, disse que em breve descobriria. Nos despedimos e 089B seguiu para casa sem um pedaço de si, que eu agora levo comigo.


Além de me divertir essa história me apresenta algumas das ideias que tenho sobre o que seja dominação, ou sobre o que seja ter alguém como seu servo. O sendo comum e o clichê, como disse em textos anteriores, são o maior problema para a fruição de uma experiência de entrega genuína. Usualmente tratamos violência como se fosse força, vulnerabilização como humilhação e idiotice como demonstração de controle. Ainda que possamos pensar em vários níveis de reconhecimento e construção de uma relação entre um dom e seus servos, as vezes o mais importante é o cotidiano, o aspecto de confiança e de contínuo aprender a obedecer e a dar ordens que estão encarnados em ambos os lados da relação. 

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