terça-feira, 20 de novembro de 2018

Sobre o relato erótico

Escrever sobre si é um contínuo exercício de aprendizagem. Os diários e blogs são um exemplo disso. Ao escrevermos damos forma a um repertório, a um conjunto de sensações que falam sobre nossa relação com o mundo, como cada um de nós cria e dá sentido às coisas que vê, cheira, diz, ouve etc. 

Quando penso em contextos de relação marcados pelo que cada pessoa possa vir a chamar de BDSM é particularmente interessante pra mim como duas modalidades de expressão através da escrita se amontoam. A primeira delas é o manual. Os manuais são esses informes sobre como fazer as coisas, sobre a construção de valores e perspectivas razoavelmente partilhados pelas pessoas que se pensam como parte de uma relação BDSM. É nos manuais que vemos sendo articuladas as primeiras definições sobre cada uma das letras que compõem a sigla e os universos de práticas que elas podem compreender, sobre o consentimento, as ideias particulares de hierarquia, cena, jogo, safeword, etc.

Os manuais são importantes porque eles tentam criar um idioma comum para aqueles que atravessam os universos do BDSM. Mas eles não falam sobre os caminhos, sobre as experiências. Daí a curiosidade sobre os relatos. Os relatos são um mundo particularmente curioso da dimensão expressiva do BDSM. Digo isso porque, como sociedades inseridas num projeto de ocidente e de modernidade onde o sexo é colocado como possível apenas em situações de comunicação e de interlocução determinadas, falar sobre os desejos, as vontades e os corpos é particularmente complicado. Agora, pensemos sobre falar sobre desejos e vontades quando a possibilidade de fruição do sofrimento, da dor, da violação podem ser veículos de prazer. Isso é ainda mais complicado.

O aparente sigilo que os diários guardavam há algumas gerações agora são traduzidos pela possibilidade de criarmos perfis que separam nossas vidas cotidianas dos nossos desejos. É como se a intimidade colocasse a necessidade de reorganizar os limites que construímos entre público e privado sem sacrificar a ninguém. Assim, não falemos em perfis fakes nesse caso, mas em perfis outros, os perfis em que as pessoas podem construir corpos para si a partir da fala de algo que em tese não deveria ser publicizado. 


Edição de David Foster Wallace com suas próprias anotações para o livro de peças de Don DeLillo
Minha curiosidade em relação aos relatos todavia não tem a ver com essa dimensão de falar algo que em tese não deveria ser falado em público. O que me chama atenção nos relatos é como as pessoas narram suas próprias experiências. 

Meu propósito não é construir um manual sobre como redigir relatos. Longe de mim querer enquadrar o modo como cada um se sente mais confortável para se expressar. Minha própria linguagem aqui pode parecer truncada ou dura demais para uma página que se pretende a falar sobre "safadeza", "putaria", "cachorragem", enfim, sobre o que seja o desejo pelo corpo do outro em sua forma mais singela e vulnerável.

Quando leio relatos eróticos, sejam eles no universo do BDSM, hardcore ou baunilha, me salta aos olhos como as experiências são traduzidas em listas. Uma sessão, um encontro, enfim, uma parceria entre um dom e seu(s) sub(s) se converte em uma lista de coisas que foram feitas. Quase burocrático, não?

A questão então é, afinal, que importa isso? Talvez não importe nada. Mas eu gostaria de pensar uma outra alternativa, uma possibilidade de descrever o mundo e as relações que construímos nele e a partir dele com outros parâmetros. Sensações me são mais palpáveis que listas. Isso porque listas só fazem sentido em um universo onde as coisas ou foram pensadas ignorando as pessoas ou foram elaboradas a partir do apagamento dos acontecimentos. Isso me parece algo como um empobrecimento da experiência, inclusive do prazer de narrar algo.

"Suor", um dos meus últimos diários pessoais.

Falo isso porque o ato de narrar é particularmente importante pra mim, como profissional, mas também como pessoa. No adestramento dos meus subs tenho por hábito distribuir entre alguns um pequeno caderno, um diário, onde eles possam registrar suas experiências com outras pessoas, comigo e com outros dominadores. A expectativa nisso é que elas possam se colocar a obrigação de pensar sobre si mesmas, de entender como sentem prazer, como a sujeição a alguém a quem se propõem confiar pode ser uma forma de entender a si mesmas e não cair em armadilhas da ingenuidade ou do esquecimento.

Quando narramos algo podemos assumir a posição de testemunhas, de observadores, de confessores, enfim, estamos ali como uma possibilidade de ver e de retransmitir os sentidos de um acontecimento ou experiência. Somos parte máquinas, e as máquinas são esse conjunto complexo de modos de fazer e criar resposta. Mas como pessoas-máquinas, somos também movidos por sensações. E é por meio das sensações que eu gostaria de propor uma alternativa ao relato erótico como listas. Como meu interesse não é um manual de redação e estilo para relatos eróticos, permitam-me que eu termine esse ensaio com uma descrição de uma sessão ocorrida há alguns dias. Isso vocês lerão em breve, aqui.

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