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terça-feira, 23 de abril de 2019

As marcas que deixamos

A ideia das marcas atravessa toda experiência de BDSM. Falamos sobre elas direta ou indiretamente quando nos posicionamos sobre nosso interesse em marcas permanentes ou momentâneas, em nossas experiências quando sentimos a textura da corda marcada na pele, de uma palmatória ou dos dedos após uma sessão de spanking, das marcas sutis que a cera deixa no corpo. São as marcas que ficam como uma cicatriz que se desfaz quando tomamos banho após uma sessão ou cena que envolve bodywriting, ou mesmo no frio das agulhas, dos catéteres e outros objetos que atravessam, costuram e perfuram. Pensar nessas marcas é uma forma mais ou menos corporal de falar sobre outra dimensão das marcas. Essa dimensão é a das relações que construímos com as pessoas que nos servem ou aquem servimos.

Em um dos últimos textos escritos aqui, há pouco mais de um mês, eu falava que em última instância não existem dominadores sem seus submissos e servos. Seja qual for a estética que você pense para si enquanto dominador (cuidador, couro, sádico, controlador, enfim), essa posição só faz sentido em uma determinada relação que envolve as expectativas e as possibilidades que se tem junto a outras pessoas. Isso porque, do meu ponto de vista, submissão per si é subserviência tanto quanto dominação per si é arrogância. Ninguém se faz sozinho.

Os últimos tempos  pra mim tem sido marcados por uma série de eventos que me fazem pensar nessa ideia de marcas. Tem sido tempos de despedidas, de desfazer relações e deixar que as pessoas sigam para outros rumos, acompanhá-las ao longe e liberar coleiras, fazer nós que sejam mais frouxos. Isso tem ecoado em mim como uma espécie de obrigação de pensar sobre quais marcas deixo nas pessoas que chegaram a mim e o que isso eventualmente signifique. Vou ilustrar isso com uma pequena história.

Sepher, 2019 

Entre maio e dezembro de 2018 mantive uma relação fixa com um sub. Em geral ele tendia a ser descrito como frio, distante. E de fato, no início conquistar a confiança dele foi um exercício penoso, que exigiu paciência, conversa e até um certo desinteresse em fazer com que isso se tornasse uma meta. Melhor dizendo, talvez fosse uma meta, mas uma entre tantas. Passávamos algum tempo juntos, conversando, comendo, partilhando a companhia um do outro. Esse distanciamento e frieza era descrito por outros doms com os quais ele teve contato. O que esses doms talvez não soubessem, o tivessem pouco interesse em saber era como essa parede foi se construindo, quiçá apressados que estavam com qualquer outra coisa.

Estar com ele foi uma das experiências mais instigantes e construtivas da minha experiência como dominador. Isso porque na nossa displicência de antecipar os acordos e contratos, tivemos tempo de construir uma relação que realmente fez sentido dentro do universo em que habitávamos. As coisas iam acontecendo no seu tempo, tinham a duração e a intensidade que, olhando de agora, me parece que foram as que demandava ter.

Após o período eleitoral ele resolveu voltar para sua cidade de origem. Tive a sorte de, quase por acaso, ser uma das suas últimas visitas ainda aqui. Em janeiro nos despedimos e ele seguiu um outro caminho. 

Ao contar isso não quero ter a pretensão de me colocar como superior a esses outros, mas antes de falar sobre como a pressa às vezes nos afasta das pessoas. Ao dar tempo pra conhecer a história de alguém não apenas nos permitimos conhecer alguém, como também se cria um ambiente mais seguro e fértil para que nossos desejos e fetiches tomem forma. 

Nem sempre é a mão pesada ou o nó apertado que machuca, ou como dizia minha mãe, a indiferença é a rainha da barbárie. Há muitas razões pelas quais alguém chega ao mundo do BDSM e explora os limites do desejo e do corpo através da força e da dor. Há em muitos de nós, na condição de pessoas, o contato com experiências doloridas, com memórias que ativam muitas camadas de significado, de medo, de paixão. Tenho a convicção de que o interesse na força para a maioria das pessoas que conheci é mais a possibilidade de se reconhecer em um ambiente onde os limites são claros do que em uma lógica meio tóxica e danosa de transformar sofrimento em tesão. Contudo, isso tem um efeito que precisa ser melhor equalizado em nossas relações. Estar com alguém, por momentos que seja, é ser reponsável por uma relação. Ao atravessarmos esse limite do mundo do outro, nos tornamos também parte desse mundo onde os limites podem até ser claros, mas dor e prazer, humilhação e glória, marcas e cicatrizes se sobrepõem continuamente. Invariavelmente deixamos marcas nos corpos dos outros, assim como os outros deixam as suas próprias nos nossos. Enfim, mesmo usando da força, há que se ter alguma delicadeza quando se trata de caminhar entre as dores dos outros.

Enfim, é isso. Ninguém se faz sozinho.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Servidão marcada na pele

No universo das possibilidades de experimentar o BDSM existem coisas que atravessam mundos. O bondage, por exemplo. Nos dois  últimos textos penso ter delineado um pouco sobre como esse processo se dá. A ilustração do caso do shibari (uma expressão ou técnica específica para bondage) é clara nesse sentido: esteve presente na história das tecnologias de punião do Japão desde o séxulo XVII, no imaginário pornográfico que atravessou o Pacífico após a Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, também em formas de expressão artística que apesar de flertarem com o erotismo, não necessariamente constituiem formas de experiência erótica. Das técnicas de cultivo e construção naval para as masmorras, o bondage foi se adaptando às pessoas que vieram na possibilidade de imobilização algo excitante, e com isso também foi transformando-se. Mas não é sobre shibari ou qualquer outra forma de bondage que esse texto trata. É sobre bodywriting.

Bodywriting in #78


Bodywriting, como o nome indica, diz respeito ao uso corporal da escrita, ou mais especificamente, a escrever no corpo de alguém. Talvez não seja o fetiche ou interesse mais profícuo na cena BDSM, em especial a brasileira, mas reserva algumas ideias interessantes. Como sempre, vamos começar com uma história.

O livro de cabeceira é um filme de Peter Greenaway. Esse filme foi especialmente importante pra mim como pessoa apaixonada pelo mundo do cinema e também pela escrita. Desde pequeno tenho memórias de mim mesmo envolvido com esses dois universos, e O Livro de Cabeceira é uma síntese orgiástica desses dois mundos. No filme, Greenaway conta a história de Nagiko, uma moça criada pelo pai e sua irmã em uma família tradicional japonesa. O mote do filme é fundamentalmente pensar o corpo como um livro, um lugar onde as histórias são escritas e inscritas, ou seja, como um espaço onde as coisas são registradas, mas também como um espaço a partir do qual as coisas podem tomar forma. Nesse sentido, a cada ano no dia do aniversário de Nagiko o pai escreve uma bênção em suas costas e nuca enquanto a tia recita um manuscrito.

Para aqueles afeitos à cultura japonesa, não é surpresa o quanto a caligrafia ocupa um lugar especial na expressão cultural desse povo, sendo considerada coletivamente como uma arte, inclusive. Mais que isso, escrever no corpo de alguém revela algumas ideias interessantes para a forma como eu entendo o BDSM.

No contexto das práticas de BDSM, ainda que  pouco utilizada como uma prática por si, bodywirting tem sido usada como parte de jogos de humilhação, de cornear alguém e seu sentido é deduzido mais como efeito desses momentos do que com uma experiência em si. Isso é válido, e mostra um pouco da versatilidade que se pode construir em uma relação de dominação quando alguém tem uma caneta e o controle sobre alguém. Mas há mais.

Aos 16 anos tive minha primeira experiência com algo que poderíamos chamar de BDSM, contudo foi há cerca de 8 anos que eu me vi de fato consciente e explicitamente comprometido com o que isso implica. Esse tempo em mim foi marcado por uma série de mudanças complexas, mas que fazem de mim quem eu sou hoje. Sair de casa, trabalhar, cuidar do cotidiano, cuidar de si. O BDSM foi uma porta de acesso para que eu entendesse e conseguisse encontrar um lugar possível pro que me animava como pessoa. Fundamentalmete foi minha forma de entender quem eu sou como pessoa, incluindo o que há de bonito e o que me assusta, o que eu gosto em mim e aquilo com o que eu tenho de aprender a conviver.

Assim, entendo que BDSM é uma forma de se relacionar com o próprio corpo com a ajuda do outro. Uma relação entre mestre e servo, ou entre dom e sub é substancialmente uma forma de aprender sobre os próprios limites em parceria, reconhecendo e continuamente explorando nossos sentidos de dor e de glória. Nesse processo alguns gestos em especial ganham especial significado pra cada pessoa. O momento em que a corda aperta e encontra o limite da pele para um bunnyboy deve ser tão excitante quanto é o primeiro contato de uma cinta ou da própria palma da mão para um mestre sádico. Essas são formas supremas e quase consensuais desses pequenos momentos de glória que atravessa cada um de nós quando vemos o pelo arrepiar e o olho sutilmente ir fechando-se, levando todo o corpo para um outro plano de experiência. E é isso que eu sinto quando tenho uma caneta em mãos e atravesso o corpo de alguém com ela.

autorretrato corpolivro | novembro/2018


Escrever é minha forma particular de compartilhar minha intimidade com o mundo. O bodywriting pra mim é como uma sobremesa que no fim do jantar dignifica uma refeição completa e tudo que ela significa. É o momento de intimidade onde um dom e seus subs, ou um mestre e seus servos compartilham um segredo que se estende na duração do tempo da tinta, na tentativa de entender o que está sendo escrito muitas vezes aquém do que se vê no momento.

Os subs e servos que tenho são o que há de mais significativo na minha posição como mestre. São uma espécie de tesouro.  Sempre que escrevo algo no corpo de algum deles tende a ser algo que escapa o planeado, como uma espécie de agradecimento e dignificação de uma relação que faz com que ambos possam ir além. Escrever no corpo de alguém é uma espécie de bondage, no sentido que requer algo como confiança e sensibilidade, não no sentido próprio da segurança ou do controle para que a exposição e a vulneralidade não se tornem risco, mas porque ao escrever em alguém os limites dos corpos ficam por algum momento borrado, e é preciso delicadeza quando se chega ao corpo de alguém.

Assim como o BDSM é uma forma particular de entender e se relacionar com o próprio corpo, cada um pode explorar suas possibilidades através das linguagens e da forma como cada técnica se apresenta na sua própria história. Eu tenho a graça e a sorte de ter uma memória, e a escrita talvez seja o maior instrumento da memória. Agora só me resta escrever. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O que faz um dominador?

O que faz de alguém um dominador é uma pergunta que nunca sai da minha cabeça. Isso porque se dominação é um eixo organizador do BDSM, não existe exatamente uma instância de controle que certifique alguém como "dominador de fato". A não certificação em certa medida é nossa salvação, afinal, poderíamos dizer que existem tantos tipos de dominador quanto pessoas que se chamam dessa forma. Em todo caso, não dá pra abrir mão de pensar os efeitos que isso tem sobre situações concretas. Pensemos com situações.

Tank e Dylan Hafertepen são nomes conhecidos no cenário BDSM internacional. Caso você não os conheça, quiça uma busca rápida ao google te leve direto às notícias sobre a morte de Tank. Dylan se tornou famoso pelos inúmeros procedimentos cirúrgicos e pela utilização de esteróides de modo a adequar o seu corpo a proporções mais volumosas. Seu pretensão era de uma silueta ursina musculosa notabilizada pelas coxas e braços volumosos e o tronco reto. Dylan tinha uma espécie de harém com subs que também adotavam a mesma estética e, provavelmente, com práticas similares. No final de 2018, a relação de Tank e Dylan ganhou as páginas dos notíciários em razão do falecimendo de Tank após injetar silicone nos testículos, prática adotada por Dylan e outros do grupo. Segundo noticiado em diversos canais, além de rumores e comentários, as injeções de silicone eram recomendações de Dylan que além disso mantia outras práticas consideradas persecutórias e abusivas com seus subs.O BuzzFeed escreveu uma reportagem relatando de forma mais detalhada o ocorrido, e caso queira lê-la, basta vir aqui.

Uma segunda cena, dessa vez mais curta, é um debate que acompanhei no FetLife. Para aqueles que não conhecem, o FetLife é uma rede social fetichista que concilia ferramentas como grupos de discussão baseado no compartilhamento de interesses, além de perfis pessoais de pessoas de vários lugares do mundo que tem interesse em práticas fetichistas e BDSM. Em muitos aspectos é semelhante ao Orkut ou ao Facebook, com a vantagem de não ter parentes, de você poder criar redes de vinculação mais flexíveis (rope families, clans, ter múltiplos parceiros por exemplo) além de permitir possibilidades de autoidentificação em termos de gênero, orientação sexual e interesses. A maior parte das informações circula em inglês e aqui no Brasil ainda há poucos usuários. De todo modo é um espaço interessante pra se pensar e ver como outras pessoas discutem aspectos interesantes de suas experiências, além de registrá-las. Em um desses debates que me chegou de modo quase aleatório, uma moça submissa escrevia sobre a noção de 'masculinidade tóxica' (se você não sabe de que se trata, clique aqui). Com base em um critério linguístico ela argmentava que esse conceito era falso e não podia ser aplicado porque no fim não se poderia ou deveria adjetivar pessoas com formas de classificação desse gênero, usualmente atribuídas a coisas. Os comentários se replicavam chegando a quase uma centena. Muito deles aplaudiam e concordavam, pessoas com diversas formas de identificação, fossem mais propensas a uma postura mais ativa, fossem propensas a algo mais passivo. Poucos se opunham ao comentário.

Por fim, uma terceira situação ocorreu ainda essa semana, dessa vez pelo Instagram. Em uma de suas sessões de perguntas e respostas o Marcus respondia a pergunta de uma pessoa perguntando se haviam homens dominadores passivos no Brasil. A resposta muito cortês e educada foi de que sim, bastava procurar e ser um pouco paciente, já que não seria a combinação mais comum de encontrar. 

O que essas três situações tem em comum? Em que medida elas podem ajudar a responder a pergunta lá no começo? Bem... de modo imediato poderíamos dizer que elas falam sobre as ideias que temos sobre o que signifique ser dominador, mas em última instância elas também dizem muito sobre o que entendemos como um homem deva se comportar. 

Petraios & Sepher | Junho/2018

Em alguns momentos devo ter repetido aqui que o modo como entendo BDSM é como uma espécie de erotização do poder. Em miúdos isso significa que quando algo que chamamos de BDSM nos excita, parte disso é pela suposição de ordem e controle, de que alguém está a cargo da situação ou sendo coagida por ela. É isso que em alguma medida faz com que pensemos que um submisso que se excita em ser desumanizado e um dominador que se coloca como o homem mais poderoso no fim das contas estejam falando sobre a mesma coisa. Mas isso é também o que faz com que figuras como dominatrix sejam tão fascinantes, afinal, quando se trata de subversão, algo só é excitável quando entende-se que a ordem do mundo concreto é de outro tipo, daí mulheres trantando homems como coisas ser algo excitável só faz sentido quando se supõe que a ordem social no mundo exterior opera de modo contrário. Um dominador ou uma dominatrix, nesse quadro geral é alguém que representa a condensação máxima de controle. E é esse o ponto que nos interessa aqui. Quais as responsabilidades que assumir o controle de algo sugere?

Com a popularização do BDSM nos últimos tempos tem ocorrido a sensação de que o número de dominadores - e talvez também de submissos e submissas  tem aumentado. Se isso é verdade ou apenas efeito da possibilidade de encontrar essas pessoas, é algo a se discutir. O fato é que mais gente se reconhecendo dessa forma significa mais gente disposta a tentar formas de sexualidade não tão habituais da nossa tacanha educação sexual e de gênero, mas também significa que eventualmente estejamos chamando de dominação um certo conjunto de comportamentos que são apenas violentos e grosseiros. Quem lê as postagens aqui já deve ter entendido minha posição a esse respeito. Caso não, é bom voltar algumas postagens e acompanhar, mas em resumo, se trata de buscar o que diferencia práticas sexuais extremas e violentas de práticas com posições hierarquizadas e de erotização da força e controle. Falo isso com a intuição quase convicta de que certas pessoas que se pensam como dominadores talvez sejam apenas escrotas e sem noção, e poderíamos dizer o mesmo para submissos, talvez.

Desautorizar alguém na sua possibilidade de autorreconhecimento como dominador ou submisso não significa rejeitar que o que ela esteja fazendo ao exercer sua sexualidade seja inadequado. Com isso quero dizer que qualquer prática deve prezervar a possibilidade de diálogo e construção conjunta entre dominador e submisso. Os acordos são a principal riqueza e segurança de uma prática, de modo que se é de consensual entre as partes a adoção de uma conduta específica não há muito o que objetar. Apenas tome as providências para que isso seja realizado da forma mais segura e sã possível. Mas nem sempre isso parece acontecer. E é aí que devemos estar alertas. Uma das coisas que faz com que eu me sinta seguro e tranquilo em relação ao BDSM é a convicção de que uma negativa sempre vai funcionar. Quando eu digo ou um sub ligado a mim diz não ter interesse em uma prática, isso significa que naquelas circustâncias e momentos é fora de cogitação que isso possa acontecer entre as pessoas envolvidas. "Acordos" não acordados não prezam por esse princípio e podem machucar e expor as partes a situações de risco, e mesmo certas situações de risco estabelecidas como consensuais devem ser pensadas em seus limites. Entre sugerir a seus subs uma certa estética corporal e expô-los a situações de vulnerabilidade e perigo há um limite nem sempre claro, de modo que precismos estar atentos e sermos responsáveis.

Soa um pouco clichê e demasiado "desconstruído", mas as ideias de consensualidade e segurança são bases fundamentais, clássicas e atuais para qualquer prática BDSM. São elas que garantes o aspecto são de uma experiência. O que faz de alguém dominador talvez deva ser o grau de comprometimento e responsabilidade que ele demonstra ter com aqueles que se submetem e o respeitam, isso porque é sua função principal como criador de uma experiência, mas também porque acreditem ou não, não existe dominador sem submisso. Precisamos posivitar as nossas ideias de hierarquia e entender que mesmo um dominador só é dominador em certas situações e momentos que devem ser estabelecidos entre aqueles que cabem. No fim, se temos tantos dominadores atualmente, esse pânico numérico devesse ceder à ideia de que todo dominador é dominador para um certo alguém, não para todos. 

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Relato 002 - As partes tomadas

"Madame Bovary c'est moi"
Gustave Flaubert
[leia enquanto escuta essa música]

A primeira imagem que alguém pode ter de São Paulo provavelmente é de uma cidade gigante, repleta de prédios, cinzenta. Uma Gotham City em paleta de cores levemente mais moderada que as reproduzidas pelo cinema. Isso pode ser verdade, mas também esconde a quantidade de encontros por acaso que se pode ter com pessoas conhecidas - isso pra não mencionar os desconhecidos íntimos, aqueles que vemos todo dia sem saber quem são. Isso provavelmente deve ser porque a cidade é uma imagem na cabeça de cada um, e o que se vive de fato são pequenos pedaços, razoavelmente conhecidos pelo cotidiano exercido neles. Os espaços de lazer e diversão, o trabalho, a vizinhança e a família costumam conectar isso. Acrescentemos a isso a curiosidade de que, ao menos no bairro onde vivo, aqui é, entre as cidades que já conheci, um dos poucos lugares onde em aplicativos de geolocalização não consigo ir muito além de 1 km no volume de 50 perfis mais próximos que minha modalidade de conta permite visualizar. 

Essa nota sociológica contudo não serve de muita coisa em si. Ela está aí em virtude de um pequeno causo ocorrido há pouco. Hoje é quinta-feira em uma semana que até ontem havia sido marcada pelo frio e pela chuva. O sol reinou, fazendo com que tivéssemos de fato a prometida primavera.

Estava saindo para resolver pendências de trabalho por volta das 14h. No meu caminho o metrô é um veículo inadiável. Tomei a condução na estação próxima a onde moro e desci na estação seguinte para fazer a baldeação para outra linha que me levaria até meu destino. Pouco depois de embarcar no segundo trem me dou conta de uma figura conhecida. Pele clara, cabelo levemente gris, as mãos firmes, grandes e macias deslizavam a tela do celular simultaneamente se entretendo e ignorando o movimento exterior. Me aproximei, algo dispensável em razão do pouco volume de pessoas no transporte. Queria provocá-lo. Aproximei-me primeiro pelo lado, eventualmente deslizando a coxa pelo seu braço, e logo depois, em frente. Ele permanecia desconcertado, levemente irritado e ignorando o que se passava, fixo à tela. Não reagia de maneira expressiva. Encostei com um chute leve o seu sapato, o que vez com que os olhos grandes e escuros se erguessem de baixo pra cima me observando. Com o dedo indo em direção aos lábios disse para que ficasse calado e dei um riso, enquanto ele corava e esboçava um riso tímido, em resposta. Era 089B, de quem falei no relato anterior.

Perguntei onde estava indo. Disse que estava voltando para casa após uma manhã de reuniões e que teria coisas para continuar fazendo em sua própria casa. Desceria na estação seguinte para ir a um cartório, e logo em seguida retornaria para casa. Ele trabalha como arquiteto e morávamos relativamente próximos, a cerca de duas ou três estações, algo como que dois quilômetros de distância. Sugeri então que fizesse o que tinha de fazer o mais rápido possível e que o esperaria para que tomássemos um café. Combinado feito, ele seguiu enquanto esperei por cerca de quinze minutos até que aparecesse de volta à estação. Estava suado, aparentemente havia corrido para não me deixar esperando. Seguimos até a estação onde e descemos próximo a um centro cultural na vizinhança de onde eu morava. No caminho, mais uma vez permanecia sentado enquanto eventualmente lhe aplicava uns chutes aleatórios sobre o sapato.

Chegamos ao café. Estava cansado e logo após sentarmos coloquei minha perna sobre a sua, do outro lado da cadeira. Assim como dito por sua esposa, a atitude tímida fazia com que se enrubescesse com demasiada facilidade. Imagino que deve ter no lapso de segundos entre estar sentado e perceber minha perna sobre a sua as probabilidades de ser visto por vizinhos, amigos, conhecidos que faziam parte do seu cotidiano ali na redondeza. Mexia as mãos, baixava a cabeça, ansioso. Tomei sua mão, virei o celular contra a mesa e disse que se acalmasse. Nosso pedido chegou e disse para servir nosso café, como havia feito na semana anterior.

Seria inevitável falarmos do nosso encontro anterior; afinal, pouco havíamos conversado desde então. Continuava mantendo comunicação frequente com sua esposa. Perguntei como estava, o que sentiu, se algo o havia perturbado na nosso repentino combinado. Me encantava como suas respostas eram um avanço, a cada informação nova agregava um elemento a mais daquilo que lhe ensinávamos. Em menos de cinco minutos já usava o 'senhor' nas respostas com destreza e proficiência. Também estava mais tranquilo, aparentemente mais excitado e confortável na sua própria pele e posição.

089A era jornalista e havia conhecido o marido durante a universidade, já que estudavam em lugares próximos e tinham amigos em comum. Casaram-se cerca de 3 anos depois de iniciado e namoro e estavam juntos há 9 anos mais. Disse ter curiosidade ao longo dos anos, que sempre tivera uma fascinação por pessoas que lhe estimulavam respeito e obediência. Era o caso da esposa, em muitos aspectos mais deliberativa e cheia de iniciativa. Contudo, dizia também ter curiosidade no contato com homens, o que foi sempre deixado para posteriori, apesar do desembaraço com que conversava com a companheira de anos.

Nosso encontro dias antes, dizia ele, foi um muitos sentidos, dois em especial. O lugar de submissão nos encontros com sua esposa ou outras pessoas, e o encontro com outro homem. Ele estava ali, de surpresa, a serviço de duas figuras que deveria obediência e reconhecia. Dei uma leve tapinha em seu rosto quando falou isso. Um riso tímido, bonito pelo seu aspecto genuíno se fazia no canto da boca. O café havia chegado a seu fim e haveria de devolvê-lo à sua casa.

Fui assaltado pela recorrente ideia de tomar recompensas ou troféus pelas pequenas realizações do dia. Rapidamente vasculhei em minha mochila um envelope. Pedi que levantasse e baixasse um pouco a calça para que visse a cueca. Entreguei o envelope e ordenei então que fosse ao banheiro, tirasse a cueca, depositasse dentro do envelope e a trouxesse até mim. Fez um breve gesto de excitação ou resposta até que, mais uma vez, respondi que ficasse calado levando o dedo aos lábios. Dei um tapa em sua bunda e indiquei o caminho do banheiro.

Enquanto seguia enviei uma mensagem para sua esposa, 089A, dizendo que caso estivesse em casa estaria enviando um presente para ela. Perguntou o que era. Não respondi, disse que em breve descobriria. Nos despedimos e 089B seguiu para casa sem um pedaço de si, que eu agora levo comigo.


Além de me divertir essa história me apresenta algumas das ideias que tenho sobre o que seja dominação, ou sobre o que seja ter alguém como seu servo. O sendo comum e o clichê, como disse em textos anteriores, são o maior problema para a fruição de uma experiência de entrega genuína. Usualmente tratamos violência como se fosse força, vulnerabilização como humilhação e idiotice como demonstração de controle. Ainda que possamos pensar em vários níveis de reconhecimento e construção de uma relação entre um dom e seus servos, as vezes o mais importante é o cotidiano, o aspecto de confiança e de contínuo aprender a obedecer e a dar ordens que estão encarnados em ambos os lados da relação.