A ideia das marcas atravessa toda experiência de BDSM. Falamos sobre elas direta ou indiretamente quando nos posicionamos sobre nosso interesse em marcas permanentes ou momentâneas, em nossas experiências quando sentimos a textura da corda marcada na pele, de uma palmatória ou dos dedos após uma sessão de spanking, das marcas sutis que a cera deixa no corpo. São as marcas que ficam como uma cicatriz que se desfaz quando tomamos banho após uma sessão ou cena que envolve bodywriting, ou mesmo no frio das agulhas, dos catéteres e outros objetos que atravessam, costuram e perfuram. Pensar nessas marcas é uma forma mais ou menos corporal de falar sobre outra dimensão das marcas. Essa dimensão é a das relações que construímos com as pessoas que nos servem ou aquem servimos.
Em um dos últimos textos escritos aqui, há pouco mais de um mês, eu falava que em última instância não existem dominadores sem seus submissos e servos. Seja qual for a estética que você pense para si enquanto dominador (cuidador, couro, sádico, controlador, enfim), essa posição só faz sentido em uma determinada relação que envolve as expectativas e as possibilidades que se tem junto a outras pessoas. Isso porque, do meu ponto de vista, submissão per si é subserviência tanto quanto dominação per si é arrogância. Ninguém se faz sozinho.
Os últimos tempos pra mim tem sido marcados por uma série de eventos que me fazem pensar nessa ideia de marcas. Tem sido tempos de despedidas, de desfazer relações e deixar que as pessoas sigam para outros rumos, acompanhá-las ao longe e liberar coleiras, fazer nós que sejam mais frouxos. Isso tem ecoado em mim como uma espécie de obrigação de pensar sobre quais marcas deixo nas pessoas que chegaram a mim e o que isso eventualmente signifique. Vou ilustrar isso com uma pequena história.
Sepher, 2019 |
Entre maio e dezembro de 2018 mantive uma relação fixa com um sub. Em geral ele tendia a ser descrito como frio, distante. E de fato, no início conquistar a confiança dele foi um exercício penoso, que exigiu paciência, conversa e até um certo desinteresse em fazer com que isso se tornasse uma meta. Melhor dizendo, talvez fosse uma meta, mas uma entre tantas. Passávamos algum tempo juntos, conversando, comendo, partilhando a companhia um do outro. Esse distanciamento e frieza era descrito por outros doms com os quais ele teve contato. O que esses doms talvez não soubessem, o tivessem pouco interesse em saber era como essa parede foi se construindo, quiçá apressados que estavam com qualquer outra coisa.
Estar com ele foi uma das experiências mais instigantes e construtivas da minha experiência como dominador. Isso porque na nossa displicência de antecipar os acordos e contratos, tivemos tempo de construir uma relação que realmente fez sentido dentro do universo em que habitávamos. As coisas iam acontecendo no seu tempo, tinham a duração e a intensidade que, olhando de agora, me parece que foram as que demandava ter.
Após o período eleitoral ele resolveu voltar para sua cidade de origem. Tive a sorte de, quase por acaso, ser uma das suas últimas visitas ainda aqui. Em janeiro nos despedimos e ele seguiu um outro caminho.
Ao contar isso não quero ter a pretensão de me colocar como superior a esses outros, mas antes de falar sobre como a pressa às vezes nos afasta das pessoas. Ao dar tempo pra conhecer a história de alguém não apenas nos permitimos conhecer alguém, como também se cria um ambiente mais seguro e fértil para que nossos desejos e fetiches tomem forma.
Nem sempre é a mão pesada ou o nó apertado que machuca, ou como dizia minha mãe, a indiferença é a rainha da barbárie. Há muitas razões pelas quais alguém chega ao mundo do BDSM e explora os limites do desejo e do corpo através da força e da dor. Há em muitos de nós, na condição de pessoas, o contato com experiências doloridas, com memórias que ativam muitas camadas de significado, de medo, de paixão. Tenho a convicção de que o interesse na força para a maioria das pessoas que conheci é mais a possibilidade de se reconhecer em um ambiente onde os limites são claros do que em uma lógica meio tóxica e danosa de transformar sofrimento em tesão. Contudo, isso tem um efeito que precisa ser melhor equalizado em nossas relações. Estar com alguém, por momentos que seja, é ser reponsável por uma relação. Ao atravessarmos esse limite do mundo do outro, nos tornamos também parte desse mundo onde os limites podem até ser claros, mas dor e prazer, humilhação e glória, marcas e cicatrizes se sobrepõem continuamente. Invariavelmente deixamos marcas nos corpos dos outros, assim como os outros deixam as suas próprias nos nossos. Enfim, mesmo usando da força, há que se ter alguma delicadeza quando se trata de caminhar entre as dores dos outros.
Enfim, é isso. Ninguém se faz sozinho.
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