terça-feira, 20 de novembro de 2018

Somos o que fazemos?

Em muitas conversas com amigos, slaves, subs e sub-amigos costumo dizer que o mais importante do BDSM é fugir da imagem senso comum que se constrói sobre ele. Isso implica principalmente oferecer ao clichê um espaço que lhe faça sentido, e esse usualmente não é o palco, o centro das atenções. 

É das mídias que vem as referências que temos para entender o que seja BDSM e diferenciá-lo seja de relações baunilha seja de relações hardcore - mesmo que façamos isso para fins puramente didáticos ou exploratórios. Costumamos falar em mídia como um chavão pra nos referirmos à televisão e aos meios de comunicação e informação de forma ampla, mas não se trata apenas disso. Quando falamos em mídia aqui devemos recordar a esteira que coloca numa mesma linhagem os contos e folhetins proibidos do marquês de Sade, os anúncios de revistas eróticas e pornôs dos anos 1970 a 1990, os desenhos do Tom of Finland, a estética pornô dos filmes do Cadinot e outros diretores, ou mesmo as versões mais contemporâneas do cinema comercial onde o sexo compõe parte da narrativa sobre o cotidiano, assim como a violência, o sofrimento e a dor. Ah, e claro, não nos esqueçamos de suas atualizações que nos são mais contemporâneas, como os aplicativos e redes sociais que podem ser acessados por quase todos com informações e repertórios mínimos.

Esse acervo de imagens que compõem nosso arcabouço pra descrever o que seja BDSM e o que fazemos quando dizemos que somos dominadores, submissores, fetichistas ou o que seja nos dá a aparente impressão de que estamos falando da mesma coisa. Mas, talvez não estejamos.

No meu entendimento, essa espécie de filosofia pessoal de quem se pega por muito tempo pensando nos significados implicados nas experiências que desenvolve, BDSM é como a visão panorâmica de uma floresta. Talvez poucos tenham tido a oportunidade de sobrevoar por horas uma floresta no curso de algum destino. Essa é a imagem mais acessível pra mim porque é algo que me atravessa profissionalmente, e sempre que me deparo com essa imagem e as sensações que ela produz, sinto que ela pode ser algo positivo pra pensar a questão do que seja BDSM.

A primeira coisa que temos que ter em mente é que assim como a floresta, o que julgamos ver não existe. Ao ver as árvores justapostas ali num mesmo solo se estendendo por um mundo sem fim, não é uma floresta que estou vendo. É o oposto. Estou atribuindo uma imagem e um nome de floresta a algo que pode ser outra coisa. Trabalhando na Amazônia já alguns anos, uma das primeiras lições que aprendi é que o que os brancos chamam de floresta pode ser a casa ou o jardim de alguém. A floresta doméstica ou o jardim de um povo não são o mesmo que uma floresta, ainda que eu usualmente veja uma floresta quando olhando pra mesma coisa que meus amigos indígenas veem. O mesmo pode ser dito do BDSM. Alguns dos subs com quem converso, usualmente alguns desses se reconhecendo como heterossexuais me perguntam se as ações de um eventual parceiro ou parceira são BDSM. A resposta que tenho é que nem sempre. Pode ser, mas pode ser outra coisa também. 

Assim como a imagem projetada da floresta a partir das inúmeras árvores, o BDSM é desde a minha perspectiva esse amontoado de coisas nem sempre conciliáveis entre si mas que são ajuntadas num mesmo universo por terem algum traço percebido como comum. De certa maneira, ainda sobre a floresta, quando vemos uma árvore usualmente escondemos uma série de outras coisas que estão compondo ela e que ignoramos: outras plantas que usam a árvore como hospedeira ou como parceira simbiótica, os fungos que estão enraizados, a relação entre o sol e as folhas. A sigla em si fala pouco sobre o universo de práticas que o BDSM envolve, assim como olhar uma árvore fala pouco sobre a floresta.

Cena do filme 'O Anticristo', de Las von Trier (2009).

De minha parte, além da glosa simplória de BDSM como o agregado de prática que envolvem Bondage, Dominação/Disciplina, Sadismo e Masoquismo, entendo que cada uma dessas partes é um guarda-chuva ou uma árvore que guarda inúmeras outras. Essas coisas são práticas, jogos, desejos, fantasias e possibilidades que não estão fechadas em si, assim como uma árvore nunca é só uma árvore. 

Se ao vermos uma árvore podemos criar a imagem de floresta, então é preciso ver que cada árvore é sua própria floresta, e assim aprender a tanto separar quando restabelecer a multiplicidade que há em cada coisa. No fim, não se trata de saber se o que vemos é ou não real e certo e legítimo, mas de entender que podemos compreender o mundo sobre tantas formas quantas forem as formas que nos colocamos a disposição de experimentar através da relação com o outro.

É essa minha posição pessoal sobre o BDSM: uma forma de caminhar através do corpo do outro, de aprender sobre si com a companhia de alguém. De entender que limites podem ser redesenhados tanto da pele pra fora quanto da pele pra dentro. De entender que somos "sementes, muito mais do que raízes", como diria a Adelia Prado. 

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