O que faz de alguém um dominador é uma pergunta que nunca sai da minha cabeça. Isso porque se dominação é um eixo organizador do BDSM, não existe exatamente uma instância de controle que certifique alguém como "dominador de fato". A não certificação em certa medida é nossa salvação, afinal, poderíamos dizer que existem tantos tipos de dominador quanto pessoas que se chamam dessa forma. Em todo caso, não dá pra abrir mão de pensar os efeitos que isso tem sobre situações concretas. Pensemos com situações.
Tank e Dylan Hafertepen são nomes conhecidos no cenário BDSM internacional. Caso você não os conheça, quiça uma busca rápida ao google te leve direto às notícias sobre a morte de Tank. Dylan se tornou famoso pelos inúmeros procedimentos cirúrgicos e pela utilização de esteróides de modo a adequar o seu corpo a proporções mais volumosas. Seu pretensão era de uma silueta ursina musculosa notabilizada pelas coxas e braços volumosos e o tronco reto. Dylan tinha uma espécie de harém com subs que também adotavam a mesma estética e, provavelmente, com práticas similares. No final de 2018, a relação de Tank e Dylan ganhou as páginas dos notíciários em razão do falecimendo de Tank após injetar silicone nos testículos, prática adotada por Dylan e outros do grupo. Segundo noticiado em diversos canais, além de rumores e comentários, as injeções de silicone eram recomendações de Dylan que além disso mantia outras práticas consideradas persecutórias e abusivas com seus subs.O BuzzFeed escreveu uma reportagem relatando de forma mais detalhada o ocorrido, e caso queira lê-la, basta vir aqui.
Uma segunda cena, dessa vez mais curta, é um debate que acompanhei no FetLife. Para aqueles que não conhecem, o FetLife é uma rede social fetichista que concilia ferramentas como grupos de discussão baseado no compartilhamento de interesses, além de perfis pessoais de pessoas de vários lugares do mundo que tem interesse em práticas fetichistas e BDSM. Em muitos aspectos é semelhante ao Orkut ou ao Facebook, com a vantagem de não ter parentes, de você poder criar redes de vinculação mais flexíveis (rope families, clans, ter múltiplos parceiros por exemplo) além de permitir possibilidades de autoidentificação em termos de gênero, orientação sexual e interesses. A maior parte das informações circula em inglês e aqui no Brasil ainda há poucos usuários. De todo modo é um espaço interessante pra se pensar e ver como outras pessoas discutem aspectos interesantes de suas experiências, além de registrá-las. Em um desses debates que me chegou de modo quase aleatório, uma moça submissa escrevia sobre a noção de 'masculinidade tóxica' (se você não sabe de que se trata, clique aqui). Com base em um critério linguístico ela argmentava que esse conceito era falso e não podia ser aplicado porque no fim não se poderia ou deveria adjetivar pessoas com formas de classificação desse gênero, usualmente atribuídas a coisas. Os comentários se replicavam chegando a quase uma centena. Muito deles aplaudiam e concordavam, pessoas com diversas formas de identificação, fossem mais propensas a uma postura mais ativa, fossem propensas a algo mais passivo. Poucos se opunham ao comentário.
Por fim, uma terceira situação ocorreu ainda essa semana, dessa vez pelo Instagram. Em uma de suas sessões de perguntas e respostas o Marcus respondia a pergunta de uma pessoa perguntando se haviam homens dominadores passivos no Brasil. A resposta muito cortês e educada foi de que sim, bastava procurar e ser um pouco paciente, já que não seria a combinação mais comum de encontrar.
O que essas três situações tem em comum? Em que medida elas podem ajudar a responder a pergunta lá no começo? Bem... de modo imediato poderíamos dizer que elas falam sobre as ideias que temos sobre o que signifique ser dominador, mas em última instância elas também dizem muito sobre o que entendemos como um homem deva se comportar.
Petraios & Sepher | Junho/2018 |
Em alguns momentos devo ter repetido aqui que o modo como entendo BDSM é como uma espécie de erotização do poder. Em miúdos isso significa que quando algo que chamamos de BDSM nos excita, parte disso é pela suposição de ordem e controle, de que alguém está a cargo da situação ou sendo coagida por ela. É isso que em alguma medida faz com que pensemos que um submisso que se excita em ser desumanizado e um dominador que se coloca como o homem mais poderoso no fim das contas estejam falando sobre a mesma coisa. Mas isso é também o que faz com que figuras como dominatrix sejam tão fascinantes, afinal, quando se trata de subversão, algo só é excitável quando entende-se que a ordem do mundo concreto é de outro tipo, daí mulheres trantando homems como coisas ser algo excitável só faz sentido quando se supõe que a ordem social no mundo exterior opera de modo contrário. Um dominador ou uma dominatrix, nesse quadro geral é alguém que representa a condensação máxima de controle. E é esse o ponto que nos interessa aqui. Quais as responsabilidades que assumir o controle de algo sugere?
Com a popularização do BDSM nos últimos tempos tem ocorrido a sensação de que o número de dominadores - e talvez também de submissos e submissas tem aumentado. Se isso é verdade ou apenas efeito da possibilidade de encontrar essas pessoas, é algo a se discutir. O fato é que mais gente se reconhecendo dessa forma significa mais gente disposta a tentar formas de sexualidade não tão habituais da nossa tacanha educação sexual e de gênero, mas também significa que eventualmente estejamos chamando de dominação um certo conjunto de comportamentos que são apenas violentos e grosseiros. Quem lê as postagens aqui já deve ter entendido minha posição a esse respeito. Caso não, é bom voltar algumas postagens e acompanhar, mas em resumo, se trata de buscar o que diferencia práticas sexuais extremas e violentas de práticas com posições hierarquizadas e de erotização da força e controle. Falo isso com a intuição quase convicta de que certas pessoas que se pensam como dominadores talvez sejam apenas escrotas e sem noção, e poderíamos dizer o mesmo para submissos, talvez.
Desautorizar alguém na sua possibilidade de autorreconhecimento como dominador ou submisso não significa rejeitar que o que ela esteja fazendo ao exercer sua sexualidade seja inadequado. Com isso quero dizer que qualquer prática deve prezervar a possibilidade de diálogo e construção conjunta entre dominador e submisso. Os acordos são a principal riqueza e segurança de uma prática, de modo que se é de consensual entre as partes a adoção de uma conduta específica não há muito o que objetar. Apenas tome as providências para que isso seja realizado da forma mais segura e sã possível. Mas nem sempre isso parece acontecer. E é aí que devemos estar alertas. Uma das coisas que faz com que eu me sinta seguro e tranquilo em relação ao BDSM é a convicção de que uma negativa sempre vai funcionar. Quando eu digo ou um sub ligado a mim diz não ter interesse em uma prática, isso significa que naquelas circustâncias e momentos é fora de cogitação que isso possa acontecer entre as pessoas envolvidas. "Acordos" não acordados não prezam por esse princípio e podem machucar e expor as partes a situações de risco, e mesmo certas situações de risco estabelecidas como consensuais devem ser pensadas em seus limites. Entre sugerir a seus subs uma certa estética corporal e expô-los a situações de vulnerabilidade e perigo há um limite nem sempre claro, de modo que precismos estar atentos e sermos responsáveis.
Soa um pouco clichê e demasiado "desconstruído", mas as ideias de consensualidade e segurança são bases fundamentais, clássicas e atuais para qualquer prática BDSM. São elas que garantes o aspecto são de uma experiência. O que faz de alguém dominador talvez deva ser o grau de comprometimento e responsabilidade que ele demonstra ter com aqueles que se submetem e o respeitam, isso porque é sua função principal como criador de uma experiência, mas também porque acreditem ou não, não existe dominador sem submisso. Precisamos posivitar as nossas ideias de hierarquia e entender que mesmo um dominador só é dominador em certas situações e momentos que devem ser estabelecidos entre aqueles que cabem. No fim, se temos tantos dominadores atualmente, esse pânico numérico devesse ceder à ideia de que todo dominador é dominador para um certo alguém, não para todos.