sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Servidão marcada na pele

No universo das possibilidades de experimentar o BDSM existem coisas que atravessam mundos. O bondage, por exemplo. Nos dois  últimos textos penso ter delineado um pouco sobre como esse processo se dá. A ilustração do caso do shibari (uma expressão ou técnica específica para bondage) é clara nesse sentido: esteve presente na história das tecnologias de punião do Japão desde o séxulo XVII, no imaginário pornográfico que atravessou o Pacífico após a Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, também em formas de expressão artística que apesar de flertarem com o erotismo, não necessariamente constituiem formas de experiência erótica. Das técnicas de cultivo e construção naval para as masmorras, o bondage foi se adaptando às pessoas que vieram na possibilidade de imobilização algo excitante, e com isso também foi transformando-se. Mas não é sobre shibari ou qualquer outra forma de bondage que esse texto trata. É sobre bodywriting.

Bodywriting in #78


Bodywriting, como o nome indica, diz respeito ao uso corporal da escrita, ou mais especificamente, a escrever no corpo de alguém. Talvez não seja o fetiche ou interesse mais profícuo na cena BDSM, em especial a brasileira, mas reserva algumas ideias interessantes. Como sempre, vamos começar com uma história.

O livro de cabeceira é um filme de Peter Greenaway. Esse filme foi especialmente importante pra mim como pessoa apaixonada pelo mundo do cinema e também pela escrita. Desde pequeno tenho memórias de mim mesmo envolvido com esses dois universos, e O Livro de Cabeceira é uma síntese orgiástica desses dois mundos. No filme, Greenaway conta a história de Nagiko, uma moça criada pelo pai e sua irmã em uma família tradicional japonesa. O mote do filme é fundamentalmente pensar o corpo como um livro, um lugar onde as histórias são escritas e inscritas, ou seja, como um espaço onde as coisas são registradas, mas também como um espaço a partir do qual as coisas podem tomar forma. Nesse sentido, a cada ano no dia do aniversário de Nagiko o pai escreve uma bênção em suas costas e nuca enquanto a tia recita um manuscrito.

Para aqueles afeitos à cultura japonesa, não é surpresa o quanto a caligrafia ocupa um lugar especial na expressão cultural desse povo, sendo considerada coletivamente como uma arte, inclusive. Mais que isso, escrever no corpo de alguém revela algumas ideias interessantes para a forma como eu entendo o BDSM.

No contexto das práticas de BDSM, ainda que  pouco utilizada como uma prática por si, bodywirting tem sido usada como parte de jogos de humilhação, de cornear alguém e seu sentido é deduzido mais como efeito desses momentos do que com uma experiência em si. Isso é válido, e mostra um pouco da versatilidade que se pode construir em uma relação de dominação quando alguém tem uma caneta e o controle sobre alguém. Mas há mais.

Aos 16 anos tive minha primeira experiência com algo que poderíamos chamar de BDSM, contudo foi há cerca de 8 anos que eu me vi de fato consciente e explicitamente comprometido com o que isso implica. Esse tempo em mim foi marcado por uma série de mudanças complexas, mas que fazem de mim quem eu sou hoje. Sair de casa, trabalhar, cuidar do cotidiano, cuidar de si. O BDSM foi uma porta de acesso para que eu entendesse e conseguisse encontrar um lugar possível pro que me animava como pessoa. Fundamentalmete foi minha forma de entender quem eu sou como pessoa, incluindo o que há de bonito e o que me assusta, o que eu gosto em mim e aquilo com o que eu tenho de aprender a conviver.

Assim, entendo que BDSM é uma forma de se relacionar com o próprio corpo com a ajuda do outro. Uma relação entre mestre e servo, ou entre dom e sub é substancialmente uma forma de aprender sobre os próprios limites em parceria, reconhecendo e continuamente explorando nossos sentidos de dor e de glória. Nesse processo alguns gestos em especial ganham especial significado pra cada pessoa. O momento em que a corda aperta e encontra o limite da pele para um bunnyboy deve ser tão excitante quanto é o primeiro contato de uma cinta ou da própria palma da mão para um mestre sádico. Essas são formas supremas e quase consensuais desses pequenos momentos de glória que atravessa cada um de nós quando vemos o pelo arrepiar e o olho sutilmente ir fechando-se, levando todo o corpo para um outro plano de experiência. E é isso que eu sinto quando tenho uma caneta em mãos e atravesso o corpo de alguém com ela.

autorretrato corpolivro | novembro/2018


Escrever é minha forma particular de compartilhar minha intimidade com o mundo. O bodywriting pra mim é como uma sobremesa que no fim do jantar dignifica uma refeição completa e tudo que ela significa. É o momento de intimidade onde um dom e seus subs, ou um mestre e seus servos compartilham um segredo que se estende na duração do tempo da tinta, na tentativa de entender o que está sendo escrito muitas vezes aquém do que se vê no momento.

Os subs e servos que tenho são o que há de mais significativo na minha posição como mestre. São uma espécie de tesouro.  Sempre que escrevo algo no corpo de algum deles tende a ser algo que escapa o planeado, como uma espécie de agradecimento e dignificação de uma relação que faz com que ambos possam ir além. Escrever no corpo de alguém é uma espécie de bondage, no sentido que requer algo como confiança e sensibilidade, não no sentido próprio da segurança ou do controle para que a exposição e a vulneralidade não se tornem risco, mas porque ao escrever em alguém os limites dos corpos ficam por algum momento borrado, e é preciso delicadeza quando se chega ao corpo de alguém.

Assim como o BDSM é uma forma particular de entender e se relacionar com o próprio corpo, cada um pode explorar suas possibilidades através das linguagens e da forma como cada técnica se apresenta na sua própria história. Eu tenho a graça e a sorte de ter uma memória, e a escrita talvez seja o maior instrumento da memória. Agora só me resta escrever.