quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Alimentando frustrações e desfazendo esterótipos

esses jogos perigosos não são de guerra
Leonilson, 1990


O Recon é um dos mecanismos de sociabilidade mais importantes da comunidade de homens fetichistas hoje em dia. Junto com o FetLife ele é um dos espaços que tem propiciado conhecer pessoas, trocar experiências, construir redes de parceria e afeto. Contudo, diferente do Fetlife, o Recon tem a vantagem de ser voltada majoritariamente para homens gays cisgêneros – ou seja, pessoas que ao nascer foram identificadas como homens e se reconhecem como tal. Além disso, nos últimos anos a cena do BDSM tem se expandido. Alguns chamam isso de "efeito 50 tons de cinza", e é provável que de fato o seja. Mas o que eu gostaria de falar nesse texto de retorno ao blog é sobre diferentes formas de frustração que esse tipo de interação vem criando - e como, às vezes, elas podem ser produtivas. 

Caso você não saiba, o Recon é um site e aplicativo destinado a promover encontros entre homens gays e fetichistas dentro da cena BDSM. O site foi criado em 1999 e em 2010 passou a ter um versão pro para aplicativos em formato iOS, popularizando-se pouco tempo depois com as versões experimentais para outras interfaces. Hoje ele é a maior e mais conhecida plataforma voltada para a comunidade. Minha primeira conta no Recon foi criada justamente próximo a esse momento de popularização, em 2015 ou 2016. Era uma época de curiosidade pra mim e também de encontro, um momento em que descobri que não estava tão sozinho quando se tratava de ter ideias "pouco ortodoxas" para viver minha própria sexualidade.

Hoje a plataforma tem mais de 200.000 usuários em todo o mundo. Mas, olhando ao redor, não é como se a comunidade fetichista ou, ao menos a cena BDSM estivesse crescendo – ainda que sem dúvida, em certos lugares ela tenha se tornado mais visível e fortalecido. Parte desse crescimento vem do fato de o aplicativo ter entrado no rol de aplicativos de encontro para homens gays. Assim como o Scruffy, o Grindr, Hornet e outros tantos, o Recon agora faz parte de uma dinâmica mais ampla de procura de parceiros e de exploração da sexualidade.

Antes de continuar é preciso refletir sobre duas coisas. Primeiro, cada um desses aplicativos é experimentado de uma maneira específica por cada pessoa. Provavelmente ao ler isso você intuitivamente reconheça que certos tipos de pessoas ou práticas serão mais facilmente encontradas em um aplicativo do que em outro. Se você procura um cara urso, talvez você imagine que seja mais fácil encontrar alguém assim no Scruffy ou no Growlr, por exemplo. No caso do Recon, a especificidade segue sendo a experiência fetichista, ou de modo muito genérico, um tipo de sexo não convencional. Além disso, um outro aspecto importante de se ter em conta é que é sempre positivo que as pessoas estejam abertas e curiosas para viver e experimentar a sexualidade da forma que melhor lhes convier, desde que respeitem os princípios básicos de consentimento e bom senso. O que me chama atenção, todavia, é que o que seja fetiche e o que seja BDSM, ou a tal "pegada forte", não são coisas tão simples de explicar e de entender. O resultado inevitavelmente é que parece que estamos falando sobre a mesma coisa, quando não,  e com isso criamos e alimentamos frustrações baseadas em nossas próprias suposições.

Jogos Perigosos, Leonilson (1990)



Em ocasiões anteriores já escrevi aqui que BDSM e sexo pesado (hardcore) não são sinônimos. Essa confusão se mescla com uma série de outras projeções fantasiosas do que são a cena BDSM e a comunidade fetichista. É provável que ao pensar em um dominador a imagem que vem à mente seja de um homem vestido em couro, por exemplo. E de fato, ainda que leathermen (as pessoas, em geral os homens, que curtem couro) possam ser dominadores, não é como se essa associação fosse absoluta ou óbvia ao longo da história. De igual maneira, cabe pensar onde se enquadram práticas já frequentes no roteiro atual, como o fisting. Fisting é uma prática de submissão? De disciplina? Onde encaixar no nosso acróstico?

Nesses anos de experiência já tive a oportunidade de conhecer pessoas de várias partes do mundo a partir do Recon. E com isso fui acumulando um repertório de experiências e conhecimentos que me ajudaram a me formar como dominador. Essas experiências não foram todas legais. Em 2019 quando estava em Berlin fui vítima de xenofobia quase uma dezena de vezes por vários usuários europeus. Tantas vezes tive conversas frustrantes e desinteressantes que pareciam iguais às de qualquer outra aplicativo, seguindo um roteiro grosseiro e mal educado. Aliás, esse tipo de interação é a que tem se tornando cada vez mais frequente. Subguloso01 diz: E ai afim de meter. Não, não estou. 

Como usuário, tenho vivido e pensado um pouco sobre minhas frustrações. Mais que isso, tenho pensando no que pode acontecer com esse encontro entre diferentes concepções e experiências sobre a sexualidade fora do mundo baunilha. Não é muito difícil, ao navegar pelo aplicativo, que se encontre declarações vagas do tipo "sub com pouquíssimos limites", "curto ser dominado por macho com pegada", ou "aberto a experimentar novos fetiches". Se por um lado isso mostra algo vibrante desse grupo de pessoas em termos de uma curiosidade genuína, por outro pode criar desentendimentos. Não foram poucas às vezes que pessoas com esse tipo de perfil já antecipavam uma lista de coisas que queriam que eu fizesse com elas. Ou ainda, que ao propor alguma atividade ou cena específica, se recusassem por sair fora do seu script. Cabe perguntar então: Não ter  limites é algo positivo ou é só uma delegação da responsabilidade? O que caralhos uma pessoa quer dizer quando pensa em "fetiche"? 

Uma coisa que caracteriza o BDSM e o distingue de outros universos são os protocolos. Hoje em dia talvez seja um pouco fora de moda, e com isso ganhamos muitas coisas interessantes. Mas o fato é que em certos contextos, a gente adora estabelecer formas de relacionamento e tratamento que são bastante particulares, principalmente quando se trata de uma relação entre Dominadores e submissos, ou entre mestres e as pessoas que Lhes prestam reverência. Isso passa pela gramática (essa regra já clássica das iniciais maiúsculas, por exemplo), pelo modo como as conversas são construídas e tudo mais. Evidentemente, seguir esse protocolo é um processo em construção. Dominação e submissão se constroem no convívio, ainda que certa cortesia seja sempre bem vinda.

Se por um lado essas experiências frustrantes criam a impressão de que estamos "perdidos na tradução", elas também mostram um reavivamento das possibilidades de viver a sexualidade (mesmo considerando que estamos falando de uma comunidade de homens gays, muitos deles brancos e com um mínimo de capital social ou escolarização). Dito de outro modo, essa sensação de que não estamos todos falando a mesma língua talvez indique que nosso dicionário esteja se expandido. Cabe ajustar os ponteiros e tentar fazer com que essas mudanças não apaguem o passado e a memória das gerações anteriores. 

Um outro aspecto – diríamos até positivo – dessas frustrações e as mudanças que elas sinalizam é que as rachaduras que elas criam pode ser uma forma de desmontar alguns estereótipos. Se por um lado esses desentendimentos partem de imagens problemáticas construídas na cultura e na sociedade sobre o que é a cena BDSM e as pessoas que integram a comunidade, por outro podemos ver também nisso a possibilidade de agregar alguma complexidade às pessoas que fazem parte da cena. Convivendo com puppies, Dominadores, submissos, Mestres, brats, amigas Dominatrix, riggers e bunnies é possível ver um universo de histórias diferentes. Por trás da máscara, das cordas, da jaqueta de couro e do chicote existem histórias e sensibilidades muito variadas. Um dominador que gosta de poesia, um submisso atleta e hiper competitivo, pessoas com talentos variados e histórias de vida igualmente. 

Se essas frustrações que vem sendo alimentadas podem servir a algo bom, que seja para entendermos que como uma cena e uma comunidade, somos pessoas muito diversas. Apesar das nossas manias excêntricas, existem pessoas reais lidando com problemas reais. O Nietsche, um filósofo austríaco que influenciou muitas gerações de pensadores modernos, dizia que "tudo que é profundo ama a máscara", esse parece ser um caso bastante adequado para inserir essa ideia. Que saibamos usar nossas máscaras de forma mais eficiente – e não custa nada exercitar um pouco de bons modos ao se dirigir a alguém superior.

Até a próxima!